Arte: Bores Júnior Foto: Divulgação
Pesquisa e reportagem Por Érica Araújo
Edição e Revisão textual: Joana Crivelente Horta
Às sete horas da manhã de uma sexta-feira, entramos no carro e partimos em busca das histórias que cercam os empreendimentos de energias eólicas. Durante o percurso para chegarmos ao nosso destino, o povoado Brejo Luiza de Brito, nos deparamos com os imensos maquinários. O intenso subir e descer dos caminhões dá à silhueta das estradas de terras uma nova roupagem. Essa ocupação do espaço também traz a promessa de progresso e desenvolvimento econômico da região a partir da chegada da energia “limpa e sustentável”.
Imbricada nas grandes serras do sudoeste da Chapada Diamantina e muito famosa pela produção e exportação de alho, a população da comunidade rural Brejo Luiza de Brito vai se acostumando com as novas formas impostas na paisagem. A cada passo caminhando, encontramos grandes máquinas eclodindo barrancos de terra de áreas arrendadas, para a manutenção das novas estradas, projetadas para que não haja nenhum tipo de curva que atrapalhe o trajeto dos grandes aerogeradores que ali vão ser implantados.
Brejo Luiza de Brito é uma comunidade rural da cidade de Novo Horizonte. Distante 574 quilômetros de Salvador, o município é muito conhecido na região pela extração do cristal rutilado e produção de alho. Originado de um povoado chamado Marcelino dos Gomes, o município se tornou referência devido à exploração de minérios, como barita, ferro, rutilo e ouro. Os registros históricos oficiais remontam à primeira feira, no ano de 1943, organizada pelo fundador da cidade, José Firmino de Souza, conhecido popularmente como José Salão e sua esposa Josina Barbosa, muito lembrada pela população mais velha por suas ações de caridade.
Observamos na prática como o ambiente e o cotidiano das pessoas vão sendo transformados, sem que elas tenham consciência dos impactos no longo prazo. Logo a mão de obra braçal passou a ser realizada pelas pessoas da região. De origem simples, poucos tiveram a oportunidade de completar o ensino fundamental e médio, raros são os que possuem um ensino superior. Em Brejo Luiza de Brito o sustento das famílias vem de atividades relacionadas à agricultura familiar e de subsistência.
O caminho para a cachoeira local onde a população costumava se banhar virou a rota dos caminhões que agora passam a levantar poeira. Por causa do trânsito e das obras, muitas casas assentadas na beira da estrada foram desocupadas. Os terrenos foram arrendados dando espaço para o alargamento das vias. Os pequenos córregos que costumavam cortar a estrada para enfim abastecer a cachoeira durante todo o ano, foram soterrados. O pequeno lago de pedras construído para ornamentar o espaço da cachoeira agora se encontra vazio, as árvores que cerceiam a paisagem, antes eram úmidas e frescas, agora se encontram secas e cinzas.
A antiga trilha “secreta”, antes conhecida somente pelos moradores locais, já não guarda mais o som da natureza. Quem pega o caminho agora é acompanhado pela sinfonia frenética dos grandes maquinários.
Muitas comunidades nesta região constituíram ao longo dos séculos as suas próprias dinâmicas, de aproximação e distanciamentos, de uso da terra e dos recursos naturais, através das relações familiares e caminhos secretos, criando estratégias próprias de enfrentamento ao Estado. Há algumas dezenas de quilômetro de Brejo Luiza de Brito, encontramos a Comunidade de Papagaio, no município de Brotas de Macaúbas. Lá encontramos “Alice”, 30 anos, revela que a chegada do complexo eólico na região da comunidade veio acompanhada de esperança. A conversa entre empreendedores e comunidade falava dos benefícios que a secular comunidade de Fundo e Fecho de Pasto iria receber.
Alice reflete que apenas após o parque ser instalado a comunidade percebeu os pontos negativos e buscar uma compensação pelos danos é desafiador. “Construir estratégias de enfrentamento acaba sendo muito desafiador, pois por um lado existem pessoas a favor, há uma perda da autonomia da comunidade, além de uma divisão de nosso povo. Alice, que prefere utilizar um nome fictício por medo de represálias, acompanha a ação das eólicas desde a chegada na região.
O primeiro leilão para exploração de energia eólica na região foi realizado em 14 de dezembro de 2009, pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), vinculada ao Ministério de Minas e Energia. Em fevereiro de 2010 o governo do Estado da Bahia anunciou investimentos de aproximadamente R$400 milhões, geração de 300 empregos na fase de implantação e 30 empregos na fase de operação, para a implantação do parque eólico de Brotas de Macaúbas. Desde então o estado da Bahia vem se destacando como o estado que mais possui investimentos em energias renováveis, além de ser o maior estado gerador de energia eólica/solar no país. Ao observarmos os números encontramos muito pouco do recurso financeiro revertido para a melhoria da vida da população local. Os postos de trabalho são em sua maioria sub empregos temporários.
Sabe-se que o conceito de energia sustentável advém da energia gerada por meio de fontes renováveis, e que não geram grandes impactos ao meio ambiente com o objetivo de não comprometer a capacidade das gerações futuras. Ou seja, a energia limpa é aquela que se recicla naturalmente dentro de uma escala de tempo humana a exemplos da energia solar fotovoltaica e eólica.
Apesar desse conceito ser muito utilizado para vender os grandes empreendimentos de energias, durante a sua fase inicial a maneira de como são produzidas essas energias, em territórios tradicionais da Chapada Diamantina, aos poucos nos revelam marcas de um processo colonial impositivo durante a escolha da área onde o projeto será instalado.
Embora o Estado da Bahia seja considerado o maior produtor de energia renovável, o preço a ser pago com a instalação destes parques eólicos dentro das comunidades tradicionais nos interiores acaba sendo muito caro. Visto que, as áreas escolhidas para serem construídos os parques eólicos são áreas assentadas por comunidades tradicionais ou de preservação.
Das 76 comunidades remanescentes de quilombo certificadas na região da Chapada Diamantina, pelo menos 35, em doze municípios distintos, estão diretamente impactadas pelos projetos energéticos, tanto por empresas eólicas como a solar. Entre essas áreas estão a APA Marimbus Iraquara, a Unidade de Conservação Serra do Araújo, em Seabra, e a APA Serra do Barbado, em Piatã. Em alguns casos, como em Morro do Chapéu, o decreto de criação do Parque Estadual foi revogado para que os empreendimentos eólicos ocupassem o local que antes resguardava nascentes e uma grande variedade de fauna e flora nativas.
Um aerogerador chega a medir 110 metros. Para ser instalado precisa ter em média 1 hectare de terra, cerca de 10.000 metros quadrados, área equivalente a um campo de futebol. A supressão de toda a fauna e flora desses espaços vem acompanhada pelo desmatamento e soterramentos de nascentes e cachoeiras, para a manutenção e construção das estradas por onde passam os caminhões, os maquinários gigantes e os acampamentos de base que irão receber parte dos funcionários e os grandes aerogeradores.
Os topos das serras, serras estas que servem de refúgio para animais de grande e pequeno porte, alguns raros, a exemplo da onça puma e aves endêmicas do território da Chapada Diamantina, costumam ser apelidados como o Corredor dos Ventos, pois é em cima dos morros que boa parte dos aerogeradores são instalados para o aproveitamento de boa parte dos ventos, já para a solar a terraplanagem da área causada pela supressão da mistura de brita e cimento é fundamental para a instalação dos painéis solares.
As narrativas que escutamos foram de como aconteceram as abordagens dos representantes das eólicas, todas de formas individuais e sempre com o apoio de líderes comunitários, um ou dois moradores, principalmente nos interiores rurais da Chapada Diamantina. Ao perguntarmos sobre como foi a chegada dessas empresas na comunidade, as respostas foram diversas, algumas com tom de preocupação e medo, outras não tinham muita informação, só ouviram rumores que a eólica estava ali seguindo as metas traçadas para a conclusão final do projeto. Afinal, enfrentar essas empresas de grande porte é de uma coragem imensa.
Energias: a luta pela terra e as dinâmicas territoriais
Na região das serras de Jacobina, cidade a 339 km da capital Salvador, a empresa de empreendimento eólico Casa dos Ventos segue seus trabalhos omitindo em seus Estudos de Impactos Ambientais (EIA) a presença das comunidades remanescentes de quilombos e tradicionais, assentadas secularmente no território. Essas comunidades que são símbolos de resistência e boas práticas ambientais se colocam hoje como um empecilho a mais na burocracia de licenciamento e consulta prévia com informações claras.
A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo Brasil, indica que ações que impactem as comunidades tradicionais devem passar antes por consulta prévia, livre e informada (art.6°).
“Se as empresas realizassem a consulta prévia a essas comunidades os impactos seriam mais amenizados, pois estariam ouvido as demandas das pessoas e entendendo as diversas realidades, promovendo assim um exercício de cidadania e auto preservação dos costumes, saberes ancestrais e preservação de determinadas áreas de uso comum com a comunidade. Uma comunidade mais combativa, autônoma e ciente de seus direitos costuma ter seus benefícios atendidos em relação ao enfrentamento dos grandes empreendimentos”, ressalta Carivaldo Ferreira, agente da CPT (Comissão Pastoral da Terra).
As grandes alterações que vêm sendo impostas ao território de Jacobina despertam o medo e atenção da pesquisadora e ativista Andreza Barreto, 35 anos. Ela resume a situação em estado de alerta: “o que preocupa muito é alteração do modo de vida das pessoas das comunidades tradicionais da Chapada Diamantina, tanto na parte da Chapada Diamantina próxima ao Parque Nacional, quanto aqui ao norte da Chapada, pois existem muitas comunidades tradicionais, remanescentes de quilombos, fundo e fecho de pastos, comunidades indígenas. Eu costumo dizer que se esses empreendimentos chegarem aqui nas formações das serras de Jacobina vamos perder as cachoeiras do Sertão da Bahia. Pois a chegada desses empreendimentos nessas comunidades altera o modo de vida, provoca conflitos intercomunitários entre as comunidades”.
A cidade de Jacobina é uma região cercada por serras localizadas na microrregião do Senhor do Bonfim, no norte do Estado da Bahia. Conhecida pelo seu potencial de extração de minérios, pedras preciosas e o turismo, com o avanço das eólicas dentro dos territórios da Chapada Diamantina, a perda de autonomia e as dinâmicas socioculturais e econômicas se tornam ameaças constantes na fragmentação das novas geografias. Essas novas dinâmicas são criadas oficialmente com ajuda do Estado por meio da Instrução Normativa 01/2020, desterritorializando as comunidades.
Para os proprietários de terras, próximas ou dentro da área onde será instalada uma torre eólica, os contratos são postos em ação. Breves “benefícios” são oferecidos para quem decide de fato arrendar a sua propriedade. As empresas oferecem uma certa quantia por mês, para cada área arrendada. Para o homem e a mulher do campo essa oportunidade serve como uma renda extra e uma perspectiva de uma vida melhor. “A partir do momento que ele assina o contrato de arrendamento de terra ele perde o direito ao uso da terra”, reflete Andreza na qual vivencia as diversas situações de abordagens realizadas em comunidades afetadas pelos empreendimentos eólicos/solares na região.
Muitos desses contratos possuem uma condição de sigilo após sua assinatura. Em algumas ocasiões, o que difere são os valores ofertados pelos donos da terra. Identificamos locações que variam de R$1,00 até um salário mínimo por hectare de terra arrendada.
Outra situação inusitada desses contratos é o fato da área arrendada sofrer alterações nas medições georreferenciadas, sempre que houver necessidade, nos adicionais contratuais, seguidas das multas caso haja uma quebra contratual. As multas variam entre 50 mil até 500 mil reais, valores irreais diante da realidade da renda de um trabalhador do campo.
Além das diversas questões socioambientais enfrentadas pelos territórios, a política desenvolvimentista ignora o mosaico cultural que compõe o que o próprio Estado identificou como Território de Identidade. Essa abordagem, que implica na divisão do Estado da Bahia em 27 territórios de identidade, tem como argumento a garantia dos costumes, do modo de vida e do processo de governança comunitária característico das diversas regiões. No entanto, os megaempreendimentos de energia renovável vêm implicando fragmentações irreversíveis para as próximas gerações, colocando em risco o equilíbrio ambiental de um diverso ecossistema.