Arte Rose Caroline Foto: Rodrigo Wanderley
Pesquisa e reportagem Por Èrica Araújo
Edição e Revisão textual: Joana Crivelente Horta
Os últimos dias têm sido conturbados, especialmente para quem é nascida, criada, formada na Chapada Diamantina; e se coloca a apurar dados sobre a mineração no território. Fechar este boletim não foi tarefa fácil. Foram três meses de muitos estudos e visitas a campo.
Quem vive aqui sabe que a exploração de minérios faz parte de nosso cotidiano. No entanto, quanto mais observamos as dinâmicas dos grandes empreendimentos de mineração, mais percebemos a contribuição da atividade para um cenário de destruição e retirada da autonomia da população.
A mineração é o processo de extração de substâncias sólidas presentes e concentradas no solo. A atividade inclui desde a extração de complexos compostos químicos para uso industrial até a retirada de materiais brutos para uso na construção civil.
Na Chapada Diamantina, região central do Estado da Bahia, o extrativismo mineral vem sendo praticado pelos povos assentados ao longo dos últimos séculos como atividade de subsistência. Desde o surgimento dos movimentos ambientalistas e preservacionistas, que se fortaleceram no território com a implantação do Parque Nacional da Chapada Diamantina (PNCD), em 1985, são diversos os casos de proibição de atividades tradicionais, que envolvem o uso de pedra, barro e areia, sob o argumento de proteção ao meio ambiente.
Mas o que notamos ao observarmos com atenção a economia da mineração hoje no território é que na medida em que as dinâmicas minerárias contemporâneas vão se expandindo, a preocupação ambiental é posta em segundo plano. A prática de apagamento das comunidades e seus saberes, no entanto, segue sendo utilizada como estratégia para a implantação de mega-projetos.
Um mapeamento elaborado pelo Grupo de estudos Geografar UFBA (Universidade Federal da Bahia), publicado em setembro de 2021, revela a extensão dos pedidos e concessões de pesquisas para mineração. As autorizações estão representadas no mapa pelas manchas verdes e avançam por todo o estado da Bahia. A análise dos dados aponta para uma padronização normativa que desencadeia e propaga os conflitos.
(Fonte: ANM, 2021,SEI; 2019. Elaboração: Geografar, 2021)
Utilizando-se do direito à pesquisa as mineradoras avançam com suas dragas. Essa estratégia resulta em um grande número de casos que violam os direitos humanos, o direito à terra e o cuidado com o meio ambiente. Segundo dados da Companhia Baiana de pesquisa Mineral (CBPM) e da Agência Nacional de Mineração (ANM), no estado da Bahia possui 225 municípios atividade de mineração, e 80 municípios em situações de conflitos. O estudo ainda revela que são mais de 60 substâncias minerais extraídas, algumas com exclusividade no cenário nacional, a exemplo da exportação do vanádio na cidade de Maracás e urânio na cidade de Caetité.
Segundo dados do relatório Conflitos da Mineração no Brasil (2020) lançado pelo Comitê Nacional em Defesa dos Territórios Frente à Mineração, a Bahia está em terceiro lugar no ranking de situação de conflitos entre as comunidades que divergem da implantação de projetos de mineração. Em primeiro lugar neste triste ranking está o Estado de Minas Gerais, seguido do Estado do Pará.
Mesmo cientes das drásticas consequências, as mineradoras e o Estado não atuam de forma enérgica para mitigar as áreas impactadas. Em muitos casos não acontece recuperação nenhuma, ou as reparações acontecem de maneira muito lenta, sem que haja alguma esperança de recuperação do local explorado. Para as comunidades é nessa falta de responsabilidade que mora a origem dos conflitos.
O que os relatórios chamam de conflitos podemos também chamar de resistências. Para compreender como estão se dando os enfrentamentos locais, seguimos pelas veias abertas deixadas pela mineração. Numa manhã de domingo, enfrentamos uma longa e sinuosa estrada de terra, alargada para a passagem de caminhões que trabalham nas minas irregulares da mineradora Inglesa Brazil Iron. Nosso destino é o vale onde está assentada há séculos a Comunidade Quilombola de Bocaina, zona rural do município de Piatã
Foto: Açoni Santos, Pôr do Sol Serras das Comunidades Bocaina e Mocó, Piatã,Ba.
Na sede da associação comunitária vemos o povo em luta: mulheres, jovens, crianças e idosos. Da janela é possível ver o topo da montanha que vem sendo disputada pela população e por empresários do megaempreendimento que tem como lema “O futuro sustentável do ferro e do aço”. Apesar do entra e sai de pessoas, quem adentrava no local imaginava-se numa celebração pela Certificação de Comunidade Quilombola, articulada pela própria associação. Para além, ali se pautavam as estratégias de enfrentamento e se mensuravam as conquistas que a comunidade obteve nos últimos anos. Havia muito a se reconhecer, afinal, quantas pequenas comunidades conseguiram peitar uma gigante estrangeira?
A peleja das Comunidades Bocaina e Mocó x Brazil Iron é um enfrentamento simbólico que reflete o poder de resistência de um Brasil com S versus um Brazil com Z. Para iniciar os trabalhos no local a mineradora repetiu uma fórmula: ignorou a existência de comunidades seculares ali instaladas.
Organizada, a comunidade reuniu dados que apontam irregularidades da Brazil Iron, em Piatã. Uma dessas irregularidades é a omissão de comunidade quilombola e tradicional na área de influência do empreendimento, no pedido de autorização ambiental para pesquisa mineral, encaminhado ao Instituto de Meio Ambiente e Recursos Hídricos do Estado da Bahia (Inema). Ao passar por cima deste povo, a empresa e o Estado retiram da comunidade o direito à consulta prévia, livre e informada, como previsto na Convenção nº 169, de 1989, da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Em setembro de 2021, as percepções da comunidade foram apresentadas em audiência pública com o Ministério Público Ambiental (MPA-BA).
A vida do povo não está no mapa das mineradoras, o que está no mapa são as informações técnicas para que as empresas realizem a exploração. Quando a vida do povo é colocada no mapa, prova-se que os espaços são territorializados. Quando se tira a comunidade do mapa, argumenta-se que ali é terra de ninguém e, portanto, passível de ser ocupada.
Contradizendo o discurso de que “o povo não vai à luta”, o que testemunhamos foi a expressão de camponeses e camponesas que resistem ao poder opressor dos grandes empreendimentos. Se naquele vale ainda há riquezas naturais, como água de qualidade, diversidade de fauna, de flora e minérios, é porque ali reside um grupo resistente, um povo vive!
Após as denúncias da comunidade, a mineradora paralisou parcialmente suas atividades. A melhoria reconhecida pelos moradores por algum tempo, no entanto, vem carregada de tensões. Cometendo mais uma ilegalidade, sem nenhuma negociação com entidades representativas, a Brazil Iron demitiu 350 trabalhadores em fevereiro de 2022. No dia 24 de maio de 2023 a justiça ordenou a reintegração dos trabalhadores .
Foto: Coletivo ELA/Encontro da Pré -Jornada de Agroecologia nas Comunidades Bocaina e Mocó, Piatã, Ba.
Conversamos com muitas pessoas presentes na reunião em que estivemos e durante a pesquisa, mas ao notar diversas vulnerabilidades, ponderamos por não trazer nomes. Como gritar ao mundo por socorro se a voz não pode correr em liberdade? Ecoamos então o entendimento de uma das lideranças com quem conversamos: “Às vezes eu questiono sobre poder estudar, ter trabalho, ter um salário, mas não posso esquecer da necessidade de todo ser humano que é a alimentação. Se perdermos nossas terras e nossas águas, perdemos nossa autonomia. Vamos nos entregar de bandeja”. A fala busca fortalecer o grupo que resiste à tentação dos subempregos e à atuação de empresas estrangeiras em um local historicamente negligenciado pelo Estado.
Para atuar com a mineração, as empresas seguem protocolos com diversas estratégias “legais” que facilitam o processo de instalação das grandes mineradoras dentro das comunidades. Utilizando-se de propostas e tecnologias que isentam uma pesquisa mais profunda e que contenha um Estudo de Impacto Ambiental (EIA) ou um Relatório de Impacto Ambiental (RIMA), as mineradoras se aproveitam de condições parciais de “legalidade”. Um desses processos é chamado de “Guia de Utilização”, que consiste em uma autorização utilizada pelas grandes mineradoras para agilizar o processo de exploração do subsolo e que é implantado mesmo antes da Concessão de Lavras, emitida pela Agência Nacional de Mineração (ANM).
As autorizações para pesquisa têm como perspectiva atividades de baixo impacto para explorar uma determinada área. Em pouco tempo, se transforma num grande complexo, que alarga estradas, destrói topos de montanha, resultando em grandes nuvens de poeira que cobrem plantações e intoxicam a comunidade. Sob o argumento de medir o potencial de mineração, enormes alterações vão se concretizando longe das vistas da maior parte da população.
Foto: Coletivo ELA/Igreja Viva Santos Reis na Comunidade Quilombola Bocaina
Segundo dados do Movimento pela Soberania Popular da Mineração (MAM), os empregos gerados na mineração acontecem na fase inicial, logo no início da instalação da mina. As pessoas locais contratadas com carteira assinada costumam trabalhar em média por 4 meses. Devido às duras condições do trabalho braçal, muitas dessas pessoas apresentam problemas respiratórios ou problemas de coluna necessitando do atendimento do deficitário SUS nas pequenas cidades.
A chegada de um empreendimento que deveria ser uma ação benéfica para a população acaba virando histórias de muitos conflitos territoriais e violações de direitos dos moradores nativos e criados desde de pequenos na região.
A expansão de licenciamento para pesquisas de minério em todo território chapadense fica cada vez mais evidente, principalmente em áreas consideradas como zonas periféricas, zonas estas, distantes do circuito do diamante, onde está a cidade turística de Lençóis, e se estende ao norte da Chapada, na região apelidada como circuito do Ouro, onde estão as cidades de Morro do Chapéu e Jacobina.
Novo Horizonte, Piatã, Ibitiara, Oliveira dos Brejinhos são alguns dos exemplos onde acontece a exploração de minérios em paralelo à negação da existência de comunidades tradicionais. Os projetos se colocam como uma atividade econômica comum, que trará benefícios e avanços a uma atividade “subdesenvolvida”, e se expandem com o modelo neocolonial implantado pelas mineradoras.
Casa na Comunidade Quilombola do Mocó ao fundo Mineradora Brasil Iron Foto: Rodrigo Wanderley
De modo sorrateiro e utilizando o argumento de que a exploração de minérios irá gerar renda e empregos no local, além de formalizar parcerias com a prefeitura local, as mineradoras vão chegando nas comunidades. “O que se vê em quase todo território de identidade da Chapada Diamantina são as diversas solicitações de pesquisas para minérios, abrindo portas para um modelo “mercadológico” e excludente, desrespeitando e invadindo toda a diversidade de aspectos territoriais e culturais que compõem a Chapada Diamantina”, alerta o geógrafo e pesquisador Rogério Mucugê.
Guia turístico desde 1998, pesquisador e ativista, Rogério vem acompanhando desde de 2019 as comunidades de Bocaina e Mocó, entre outras comunidades na Chapada Diamantina. “Esse novo modelo que querem implantar na Chapada Diamantina reproduz toda uma homogeneidade e reduz a grande diversidade que compõe a Chapada Diamantina. É um modelo único que exclui, concentra e destrói”.
A Chapada Diamantina se destaca pela diversidade de biomas. Em um trajeto de menos de uma hora é possível passar por Campos Rupestres, Cerrado, Caatinga, Mata Atlântica e até por um pequeno Pantanal. No território são encontradas centenas de espécies endêmicas em sua flora e fauna. O território é composto por 27 municípios, com distintas especificidades e diversidade em sua base econômica, onde se destacam a extração mineral, o turismo, a agricultura e a pecuária. “Mesmo diante de tanta riqueza, o território de identidade da Chapada Diamantina está se transformando num modelo minerário de dinâmicas neocoloniais”, salienta Rogério.
Mapa dos municípios do TI Chapada Diamantina com processos de concessão de Lavras em andamento (Elaboração Valdirene Rocha- Geografar- UFBA)
Um mapa desenvolvido pelo Grupo de estudos Geografar (UFBA) com enfoque na Chapada Diamantina aponta a presença de ações de mineração em mais de uma dezena de municípios. Os pontos em vermelho sinalizados no mapa apresentam processos minerários que já estão em lavra (extração) ou seja, com autorização para explorar a área. Já os pontos em amarelo, que não estão aparecendo no mapa de forma detalhada, apresentam os municípios que estão em fase de licenciamento, para então solicitarem a concessão de lavras. Atualmente somam-se 1.439 processos de solicitação de autorização para extração. O estudo ainda identifica conflitos específicos em Abaíra, Iramaia, Lençóis, Morro do Chapéu, Seabra, Piatã e Novo Horizonte. Portanto, esses números de concessões irão triplicar em curto espaço de tempo (fonte: Geografar com dados ANM, 2021; CBPM, 2021).
Muitas dessas áreas, atualmente com concessão para pesquisa ou exploração de minério, estão situadas em lugares distantes, com populações assentadas há séculos, entre elas indígenas e quilombolas.
Por mais que a estrutura capitalista que impulsiona e se propaga por meio de estratégias de coação e exclusão dessas comunidades, as regiões mapeadas da Chapada Diamantina são compostas por diversas culturas, com suas próprias dinâmicas de plantar, criar, preservar e cuidar das águas, rios e nascentes, dinâmica essa passadas através dos saberes ancestrais que o estado tenta exterminar e moldar de acordo aos seus interesses mercadológicos.
Nessas comunidades, a prática da agricultura familiar e de extração de matérias-primas tem garantido a subsistência e a preservação do meio. Estas populações não estão de portas fechadas ao desenvolvimento e ao progresso, mas insistem na implantação de modelos que possibilitem um futuro para todos e para as futuras gerações.
O modelo de atuação das grandes mineradoras no território não diverge da forma como se coloca em outros Estados do Brasil ou até mesmo em outros territórios na América Latina ou em África. A indústria da mineração segue o curso do projeto colonizatório que já completou seus 500 anos. Chegam com a promessa de trabalho, renda e desenvolvimento, passando por cima de povos e suas raízes, deixando a terra arrasada, montanhas destruídas, nascentes poluídas e ao fim contribuem para o êxodo rural.