O agronegócio como projeto estratégico do Estado da Bahia (I)
O caso da expansão das monoculturas de batata nos gerais de Piatã

       O governo da Bahia tem sido questionado inúmeras vezes por seu apoio à expansão do agronegócio no Estado. O setor tem uma inegável influência nos rumos da política estadual, sendo a recente visita a Dubai o mais nítido exemplo das boas relações entre os grandes empresários rurais e o governo comandado pelo PT. Na Bahia, assim como no restante do país, o agronegócio tem se constituído num lobby de grande peso que pauta as prioridades da política pública em seu conjunto. A divisão pela qual a ação dos governos costuma ser tratada – política econômica, social e ambiental – cai por terra na hora de considerar a assimilação do agronegócio com projeto estratégico do Estado[1] e tem profundas consequências na hora de compreender as transformações do espaço baiano. De fato, o agronegócio, alçado pelo poder público, assume-se como solução em todas as frentes: desde fornecedor da segurança alimentar, preservador dos ecossistemas que atua com responsabilidade, criador de empregos e liderança inspiradora daqueles que procuram seguir a trilha do discurso do empreendedorismo no campo. 

       Os conflitos ocasionados pela expansão da agricultura corporativa no oeste da Bahia, e os numerosos escândalos de corrupção associados (como a tristemente famosa operação Far West) são os exemplos mais evidentes de como o estado permite que as empresas se apropriem da natureza e expulsem às populações dos espaços de vida nos que moram há gerações. No entanto, este compromisso tem sido contestado por organizações ambientais, movimentos sociais e também desde dentro das instituições do próprio estado. Neste artigo queremos abordar estes processos de contestação através do exemplo da tentativa de instalação do setor nos gerais de Piatã, município da Chapada Diamantina, no último trimestre de 2020. Este caso ilustra muito bem o posicionamento escancarado por parte dos órgãos ambientais do Estado (a Secretaria do Meio Ambiente -SEMA- e o Instituto -INEMA-) em favor das empresas e as tensões existentes que este suscita em parte dos funcionários públicos. Para isto, realizaremos uma análise dos discursos pelos quais o INEMA e o Ministério Público ambiental da Bahia entraram em litígio a raiz de uma petição de concessão de liminar no final de 2020. Nesta petição o MP solicitava a suspensão dos atos autorizativos do INEMA e das atividades da empresa Hayashi relacionadas com o desmatamento da vegetação nativa da fazenda Piabas, de propriedade da empresa e localizada nos gerais. Ampliaremos nossa análise discursiva incorporando também as justificações dos representantes da companhia, para ilustrar as similitudes dos argumentos entre o agronegócio e o INEMA em este tipo de situações. 

       Sem dúvida na Chapada o agronegócio opera numa escala menor que no Oeste da Bahia, embora seus impactos socioambientais tenham uma dimensão ecossistêmica de crucial importância para o estado baiano. Mesmo assim, ao se tratar de uma área muito conhecida, a exposição do caso ajudará a entender melhor as formas pelas quais a aliança entre o agronegócio e o estado baiano se estende inclusive para espaços que são construídos no imaginário social como paraísos naturais protegidos.  

Os gerais, alvo do agronegócio 

      Como já explicado em dossiês anteriores, o agronegócio tem um peso importante na Chapada Diamantina e condiciona muito as decisões do poder público local e estadual na região. O agronegócio leva assentado na Chapada desde a década 80, embora sua atividade tenha começado a se intensificar, sobretudo nos gerais de Mucugê-Ibicoara no início dos anos 2000. São de fato as mesmas grandes empresas que atuam neste espaço que querem se estender para os gerais de Piatã com a intenção de cultivar grandes áreas de batata irrigada, estando a Hayashi e a Fazenda Progresso entre as mais conhecidas. Trata-se de um processo de crescimento necessário à manutenção das margens de produtividade do setor que tem levado ao esgotamento e poluição dos corpos de água nos gerais da zona oriental da Chapada e que precisa integrar outros espaços e se apropriar de seus recursos para se perpetuar. 

       É necessário ter uma ideia da importância ecossistêmica dos gerais num espaço tão singular como a Chapada Diamantina. Tratam-se de áreas de recarga de água fundamentais para a regulação dos ciclos hídricos que afetam ao espaço das bacias hidrográficas sustentadas pela Chapada, entre elas às do rio Paraguaçu e a do rio de Contas, duas das maiores bacias do Estado. Os gerais têm a capacidade de acumular e armazenar água na época de chuvas que vai sendo liberada aos poucos durante a estação seca, atuando como uma esponja. No entanto, tal e como assinala uma liderança do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) da região com que a equipe do Observatório dos Conflitos Ambientais (OCA) tem contato frequente. Para esta liderança, “o agronegócio tem tornado a caixa de água da Chapada cheia de buracos”. Da mesma forma vimos no caso dos gerais de Mucugê-Ibicoara, o agronegócio tem provocado a seca dos rios e dos lençóis freáticos devido a um uso predatório das águas para a irrigação das monoculturas. Quando se pensou na proteção ambiental da Chapada, as autoridades federais só resolveram delimitar as áreas de montanha fortemente afetadas pelo garimpo mecanizado, onde abundam um tipo de solo que escoa a água rapidamente. A criação do Parque Nacional da Chapada Diamantina (PNCD) deixou por fora estes espaços de importância socioambiental estratégica[2]. 

       No caso dos gerais de Piatã, onde o agronegócio pretende se implantar, podemos acrescentar alguns elementos adicionais na hora de considerar sua relevância ecossistêmica. Estes gerais estão situados numa altitude aproximada de 1.340 metros e neles se encontra a nascente do Rio de Contas, parcialmente protegida pela Área de Relevante Interesse Ecológico (ARIE) do mesmo nome. A água que escoa dos gerais abastece as comunidades situadas ao longo do Rio de Contas, onde centenas de famílias cultivam em seus brejos, produzindo alimentos que são vendidos nas feiras municipais vizinhas. Inclusive algumas dessas produções, como o café e a cachaça, têm reconhecido prestígio e são exportados internacionalmente. Os gerais de Piatã possui um papel central no regulamento hídrico da bacia: durante as chuvas, grande parte deles ficam encharcados para durante o período de menor precipitação ir liberando essa água progressivamente. Por outro lado, a vegetação dos gerais, própria do bioma cerrado, contém algumas espécies endêmicas e em perigo de extinção. Esta vegetação contribui para o armazenamento da água e para o abrigo de numerosas espécies, algumas delas, como falamos, infelizmente, contempladas nos catálogos de espécies em extinção estaduais e federais. 

        O mapa abaixo mostra a localização dos gerais de Piatã e as áreas onde as tentativas de instalação estão tendo lugar. Aliás, a primeira destas tentativas ocorreu em 2013 , quando o INEMA autorizou a construção de uma barragem no encontro do Rio de Contas com o Gritador. Aproveitando a simplificação do licenciamento ambiental para as barragens destinadas ao abastecimento de água para uso humano, declarada pelo governo dentro de um contexto de seca, a empresa Hayashi conseguiu a autorização inicial do órgão ambiental do Estado para represar as águas no ponto sinalizado no mapa. Como discutido ao longo dos dossiês produzidos pelo OCA, este tipo de infraestrutura é fundamental para a expansão do setor e o poder público, infelizmente, está facilitando de maneira ativa sua proliferação. Contudo, as intenções de construção da represa provocaram a mobilização das comunidades que moram seguindo o fluxo das águas. Isto fez com que o MP revisasse o processo e terminasse por apresentar um recurso devido à incompletude dos documentos de impacto ambiental requeridos. Finalmente, a justiça interrompeu a construção da barragem. A chegada do agronegócio ficou suspensa até recentemente. 

Mapa 1. Extensão do projeto do agronegócio nos gerais de Piatã. 
Fonte: Arrazola (2022, em fase de elaboração).

       As poligonais do mapa representam o espaço que as várias empresas do agronegócio atualmente presentes em Mucugê e Ibicoara pretendem ocupar nos próximos anos em Piatã. Isso representa mais de 7000 hectares, segundo a documentação exigida pelo próprio INEMA às companhias. A área de cor rosa trata-se da fazenda Piabas, de propriedade da empresa Hayashi, onde os alarmes saltaram em 2020. O INEMA autorizou a supressão de quase 1000 hectares de vegetação nativa. A monocultura de batata que a empresa pretende implantar vê-se facilitada pela simplificação do processo de licenciamento ambiental que o Estado da Bahia concede ao setor desde 2016, apesar da posição contrária de muitos de seus próprios funcionários e do ministério público ambiental federal e estadual.

       A destruição provocada pelas máquinas da empresa mobilizou novamente às comunidades locais que, junto com outros ativistas e movimentos sociais, pressionaram o ministério público para se posicionar. De maneira provisória, a justiça concedeu uma liminar para suspender os Atos do INEMA e as atividades da empresa. No entanto, o confronto entre por um lado, o MP e os defensores socioambientais e, por outro, a empresa junto com o INEMA, revela como as elites políticas do Estado da Bahia tem assumido o agronegócio como projeto estratégico e as tensões que isto gera, inclusive ao interior do próprio Estado. 

O confronto entre o MP e o INEMA

       Uma vez alentado a atuar após o início do desmatamento da fazenda Piabas, o Ministério Público ambiental emitiu uma recomendação ao INEMA e à Hayashi para suspender suas atividades em outubro de 2020, haja vista as irregularidades registradas nos Atos autorizativos emitidos pelo órgão ambiental. No entanto, tanto o INEMA quanto a empresa, desconsideraram essa recomendação e o MP acabou acionando a justiça para solicitar uma medida liminar que aplicasse o princípio de precaução para suspender as atividades até que uma sentença firme fosse emitida pelo juiz. Esta liminar foi concedida finalmente e na data da publicação deste dossiê (novembro 2021) as atividades ainda continuam suspensas. 

       É necessário aprofundar mais nos detalhes do processo sumariamente descrito no parágrafo anterior para apreciar o compromisso do governo da Bahia com o agronegócio. O Ministério Público se manteve contrário a Autorização de Supressão de Vegetação Nativa (ASV) e a concessão de outorgas de água emitidas pelo INEMA após revisar a documentação da fazenda apresentada pela empresa e após realizar, mediante seu corpo técnico, o CEAMA, uma análise da área que seria cultivada. Para os propósitos do texto, nos adentraremos em alguns dos argumentos usados pelo MP que ilustram melhor a disputa ao interior do Estado que a influência do agronegócio suscita. 

       O primeiro item destacado na petição da liminar foi o da irregularidade do Cadastro Ambiental Rural (CEFIR na Bahia) da fazenda, documento auto declaratório por parte da empresa no qual registra as áreas de ocupação de solo, a reserva legal, as áreas de proteção permanente e outros aspectos conforme o Código Florestal. Já na recomendação enviada, o MP apontava a estas falhas, mas o INEMA contestou que o documento estava em regra por ter sido aprovado por ele próprio, órgão detentor da competência correspondente. O MP não escondeu sua irritação com semelhante raciocínio: 

Tendo nos referidos documentos o INEMA limitado-se a refutar as inverdades e ilegalidades trazidas pelo Ministério Público na Recomendação acerca do CEFIR da “Fazenda Piabas” sob a pueril argumentação de que era emanado “por quem de direito”, o chamado “argumento de autoridade” do órgão. (INEMA, p.17, 2020) 

O desconforto expressado pelo MP se entende melhor considerando as críticas que desde movimentos socioambientais às instituições do Estado, apontam a um “modo de atuar cartorial” por parte do INEMA durante a última década. Somada ao esvaziamento dos requisitos para licenciamento ambiental conforme determina o Código Florestal, o processo mediante o qual as empresas registram suas propriedades para obter o CEFIR carece de uma fiscalização adequada e tem provocado também muitos conflitos vinculados à grilagem em áreas de expansão do agronegócio no Oeste da Bahia. Esta falta de capacidade de controle e de excessiva permissividade para com as empresas, argumentam os críticos, faz com que o INEMA muitas vezes se limite a comprovar a presença documental sem examinar a qualidade da informação que lhe é fornecida.  

No caso que nos ocupa em particular, o MP argumenta que o CEFIR da fazenda subdimensiona a Área de Proteção Permanente (APP) por não ter incluído os espaços encharcados e brejosos detectados pelo MP e ignorados pelo INEMA. Adicionalmente, parte da APP registrada está inserida dentro da poligonal da Reserva Legal da propriedade, o que viola o Código Florestal. Tudo isto, argumenta o MP, faz com que: 

ao final, o presente Cadastro Ambiental Rural (CEFIR) [configure-se] como um registro público FALSO […] ficando, mais uma evidente a ação dolosa do INEMA em não verificar tal situação, e, pasmem, ainda assim referendar, autenticar e validar este CEFIR!!!!!!! (INEMA, p.30 2020) 

       Aprecia-se novamente no tom do documento apresentado pelo MP a irritação com o proceder do INEMA. O que subjaz por trás dos pontos de exclamação da citação tem a ver com a maneira escancarada mediante a que o INEMA se desentende de suas atribuições que faz com que este órgão nem sequer procure se defender como seria de esperar:

Em nenhum momento os argumentos ora aqui trazidos e levados ao conhecimento dos réus pela Recomendação Ministerial sobre as inverdades e ilegalidades detectadas no CEFIR sequer foram refutadas ou rebatidas (INEMA, p.18, 2020).

       No entanto, os questionamentos não se detêm nesta emissão irregular do cadastro. Os argumentos do MP sublinham também a importância ecossistêmica da região de gerais onde a fazenda Piabas está situada. Na verdade, os estudos realizados pelo MP recolhem neste ponto o que vem sendo sublinhado nas universidades, nas comunidades e nos movimentos socioambientais sobre a centralidade hídrica dessa área, que “abriga as nascentes das três mais importantes bacias hidrográficas da Bahia […] que possui uma elevada fragilidade ambiental [e] fauna e flora, raras e endêmicas [contidas nos catálogos de espécies em extinção estaduais e federais]” (Frente Ambiental de Piatã, 2021). Acrescenta-se também o fato de toda a região dos gerais de Piatã ter sido incluída nas áreas prioritárias de conservação da Bahia por um estudo realizado pela própria Secretaria do Meio Ambiente. Perante tudo isto, o MP reitera sua indignação: 

Como além de desrespeitar a todos os argumentos acima dispostos contrariando a própria legislação florestal brasileira e baiana, e esta diretiva institucional própria do Governo da Bahia para conservação do patrimônio ambiental da Bahia o INEMA pode conceder autorização para supressão de abundante mata nativa de quase 1000 hectares abrigadora de mais de cinco espécies ameaçadas de extinção. (INEMA, p.14, 2020).

       Até aqui temos constatado como o posicionamento contrário do MP ambiental da Bahia aos Atos Autorizativos do INEMA e as atividades de desmatamento do agronegócio nos gerais do Piatã traz à luz as controvérsias que o modo escancarado pelo qual o governo da Bahia tem assumido o agronegócio como projeto estratégico gera tensões inclusive ao interior do Estado. A seguir, revisaremos brevemente as justificações emitidas pelo INEMA e pela empresa aludida, procurando mostrar o grau em que seus argumentos estão alinhados. Isto servirá para reforçar o propósito central deste dossiê.

O alinhamento do INEMA com o agronegócio 

       Como já foi colocado antes, a ação do INEMA vem sendo questionada por deixar muito a desejar no que se refere a suas obrigações de fazer cumprir o que está estabelecido nos dispositivos legais que procuram a proteção do meio ambiente. Estas críticas são dirigidas também desde o legislativo por meio dos deputados da Frente Parlamentar Ambiental da Assembleia do Estado:

[…] é preciso ouvir, analisar tanto o lado técnico quanto o lado da comunidade, das pessoas que vivem aqui. A nossa grande queixa é que elas possam ser ouvidas (Frente Ambiental ALBA, 2020).

       Certamente, durante todo o processo, o INEMA não mostrou muita capacidade de diálogo, nem sequer com as outras instituições do Estado. Na nota pública emitida após a polêmica provocada pelo desmatamento da fazenda, limitou-se a responder que cumpria estritamente com a legislação em vigor. No documento em que sustenta sua postura perante às recomendações realizadas pelo MP, defende que os problemas com as comunidades afetadas devem ser abordados mediante ações de comunicação que reafirmem que as autorizações para a instalação do agronegócio são referendadas por ele. Como o convencimento de que isso é suficiente. 

Em proposição realizada pelo requerente, foi prevista a afixação de placas informativas contendo os dados referentes ao Ato Autorizativo pleiteado, bem como ações de divulgação das atividades que serão executadas junto às comunidades localizadas no entorno imediato do empreendimento, garantindo às mesmas conhecimento sobre a legalidade do Ato (INEMA, parecer final, p.6, 2020). 

       A imparcialidade e responsabilidade exclusiva para com a lei tem sido um argumento recorrente por parte das pessoas à frente da instituição. Numa reunião virtual para tratar o assunto, a presidente do INEMA reiterou que ao poder público “não lhe cabe a possibilidade de ser discricionário”. Nesse mesmo encontro, a funcionária contrariou os argumentos do MP sobre os sub-registro das áreas de proteção permanente em base aos informes das visitas técnicas realizadas (as mesmas que desde o começo ratificaram as informações fornecidas pela empresa) e deixo bem clara a posição da instituição: 

O que o INEMA está buscando é, já entramos na justiça, não defendendo o agronegócio, o empreendedor, absolutamente. A única coisa que o INEMA faz é defender o Ato Autorizativo que ele emitiu. Avaliamos que ele está dentro da lei e da legitimidade (Márcia Telles, 2020). 

       Como sublinha o MP, o empenho da entidade em legitimar seus atos autorizativos neste caso a partir do fato dele ter a autoridade para emiti-los é motivo de surpresa. Contudo, a situação parece ainda mais chocante quando ouvimos o advogado da empresa clamar por uma sorte de revanchismo ambiental que estaria por trás de minar a legitimidade do poder público para emitir este tipo de permissões: 

Temos uma crise num postulado fundamental que é a postulação de legitimidade no Ato Administrativo. […] temos uma aplicação seletiva da presunção de legitimidade […] quando se trata de autorizações ambientais e licenças emitidas essa presunção de legitimidade ela simplesmente tem sido colocada num papel de verdadeira inexistência. Isso em nome de um verdadeiro revanchismo ambiental, mesmo com a melhor das intenções, termina por gerar uma fragilização imensa da segurança jurídica justamente daqueles que percorreram os processos autorizativos e licenciadores devidos (Advogado da Hayashi, 2020).

       Então, tanto a empresa quanto o INEMA defendem a neutralidade e legitimidade do INEMA. No entanto, a instituição pública não contesta diretamente os argumentos do estudo técnico realizado pelo MP. De fato, na hora de revisar os argumentos oferecidos pela entidade, percebemos que mais uma vez existem paralelos com as declarações dos representantes da empresa. Isto pode se perceber por exemplo quando o órgão público e a companhia legitimam o processo seguido para a obtenção da ASV. Assim se referia o juiz que concedeu a liminar ao raciocínio do órgão ambiental: 

Em que pese notícia de que o requerido SHUICHI HAYASHI aguardou por mais de 1.500 dias o tramitar dos processos administrativos perante o INEMA e, somente depois de autorizado, iniciou as atividades de supressão de vegetação e, somente depois de autorizado, iniciou as atividades de supressão de vegetação (ID 84239545, págs. 44/46), não significa dizer que não houve irregularidades no tramitar junto ao órgão ambiental (TJBA, 2020). 

 

Ressalta-se que se trata de um procedimento que contou com 1.514 (mil quinhentos e quatorze) dias de tramitação, análises, estudos e verificações de viabilidade ambiental […] com atendimento a 04 (quatro) notificações requisitadas de complementações, esclarecimentos e atualização, ao longo dos quatro anos de tramitação do processo administrativo, evidenciando, desde já, não se tratar de expediente açodado ou que não tenha obedecido tramitação detalhada e de altíssimo rigor pelo INEMA (Hayashi, p.1, 2020). 

       As coincidências entre os argumentos da empresa não se limitam ao ponto anterior. As similitudes entre os discursos do INEMA e da Hayashi aparecem também inclusive em pontos que não tem a ver diretamente com os motivos da petição da liminar por parte do MP, como quando ambos procuram legitimar o bom fazer das práticas agrícolas da companhia: 

Destaca-se que o projeto proposto prevê a alternância entre a irrigação da batata, e um intervalo da produção com o plantio de Brachiaria para recuperação do solo e para fins de manejo fitossanitário, que prevê um período de tempo de até 5 anos entre o cultivo de batatas na mesma área para prevenção de patógenos e pragas. (INEMA, p.5, 2020) 

 

Não bastasse isso, a Hayashi utiliza o manejo integral de pragas. Nós temos equipes de campo dedicadas exclusivamente ao monitoramento e ocorrências de eventuais pragas. Esse manejo possibilita um uso ainda menor de defensivos, com isso temos todo um sistema de controle que envolve nosso sistema de produção que faz com que o uso de defensivos e dos recursos hídricos sejam feitos de forma ecologicamente equilibrada (Advogado da Hayashi, 2020). 

       Apesar de afirmar que não está de parte de ninguém enquanto órgão ambiental, as semelhanças entre discursos de tom propagandístico são chamativas. Mais ainda quando em seu próprio parecer, o INEMA avalia que a monocultura de batata que a Hayashi quer introduzir em Piatã “já é amplamente difundida e bem sucedida na região de Mucugê e Ibicoara, em região que compõe Agropolo, dispondo o requerente de cadeia produtiva já estabelecida naquela região” (INEMA, p.6, 2020). Esta frase tem uma evidente carga valorativa que sem dúvida faz pensar que efetivamente, o INEMA tem parte sim, que como instituição de responsabilidade do governo do Estado baiano ocupa uma posição além de sua suposta neutralidade e responsabilidade exclusiva para com a lei.

Conclusões

       Neste dossiê nos aprofundamos no conflito da expansão do agronegócio nos gerais do município de Piatã, uma região de importância ecossistêmica fundamental da Chapada Diamantina. Nesta área de recarga hídrica de extrema importância que abastece à bacia do Rio de Contas, o agronegócio tem a intenção de implementar um projeto de mais de 7.000 hectares de monocultura de batata, o que inclui uma barragem para represar o Tio de Contas e o Rio Gritador. Além do risco ecológico, centenas de famílias que vivem da agricultura familiar e que produzem alimentos de reconhecido prestígio, veem ameaçados seus meios de vida. O desmatamento da primeira fazenda autorizada para começar com os plantios mobilizou as comunidades locais e aos movimentos socioambientais da Chapada. Estes pressionaram ao MP, que realizou uma recomendação de suspender os Atos Autorizativos e as atividades de desmatamento. Ignorado, o MP solicitou na justiça uma liminar para suspender ambos elementos que por enquanto tem sido concedida.

       O litígio entre o MP ambiental da Bahia, as comunidades e os movimentos, por um lado, e o INEMA e a empresa Hayashi por outro, é um claro sintoma de como o agronegócio tem sido assumido como um projeto estratégico pelo governo e pelo Estado baiano. O desconforto do MP com o INEMA deixa entrever também que esta assimilação não está ausente de tensões internas ao interior do próprio Estado, tal e como a análise dos discursos das instituições permite observar. Cabe exigir da parte dos que estamos pela justiça e autonomia dos povos, que o governo e o Estado da Bahia recuem de suas posturas, coisa alto improvável por outra parte. Só nos resta, portanto, continuar construindo espaços onde outras vidas se tornem possíveis, espaços relacionais, com estruturas densas que consigam delinear as formas da emancipação que desejamos.

Referências

Advogado da Hayashi, 2020. Entrevista concedida no Jornal do Almoço, Piatã, disponível em: JORNAL DO ALMOÇO (03/12/20) SDC-TV.

Arrazola, Iñigo, 2022. Águas exploradas, águas que juntam: justificações, conflitos e produção do comum perante a expansão do agronegócio no Alto e Médio Paraguaçu, Bahia. Tese de doutorado em elaboração, UFBA.

Frente Ambiental Alba, 2021. Declarações após visita as comunidades de Piatã afetadas pelo agronegócio e a mineração.

INEMA, 2020. Parecer Técnico Florestal vinculado ao proceso 2016.001.002142/INEMA/LIC-02142.

Márcia Telles, 2020. Reunião com a SEMA, o INEMA, deputados da Frente Parlamentar Ambiental e representantes das comunidades afetadas de Piatã.

TJBA, 2020. Suspensão de Liminar ou Antecipação de Tutela N. 0020221-43.2017.4.01.0000/BA.

Notas:

¹ Apesar de mencionar recorrentemente ao governo da Bahia, neste dossiê falamos da inserção do agronegócio como projeto estratégico de Estado, entendendo a este último na sua divisão institucional (executivo, legislativo e judiciário) mas sobretudo no sentido gramsciano de estado integral que envolve relações sociais mais amplas (sociedade civil + sociedade política) e que são fundamentais no exercício da hegemonia.

² Neste dossiê nos referimos ao conflito socioambiental da expansão do agronegócio em Piatã nos enfocando sobretudo na importância ecossistêmica dos gerais. Mencionamos também como o agronegócio ameaça com a expulsão das centenas de agricultores familiares do município e dos outros situados na jusante do rio, embora reservamos outro artigo para falar disto com mais detalhe.

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