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A Autonomia das comunidades tradicionais e povos originários frente aos conflitos socioambientais contemporâneos
Uma reflexão crítica na perspectiva do bem viver

Por Claudio A. D. Oliveira, 

Antropólogo Agente da Comissão Pastoral da Terra

      O contexto histórico do projeto da identidade nacional brasileira foi forjado em um plano de violações e, mais recentemente, a tutela aos povos originários e tradicionais. De certa forma, esta situação ancorou o direito moderno individual, privatista e liberal com as alianças entre as elites agrárias e o poder central e liberdade como privatismo (homens brancos proprietários e que dependem da dominação e da sujeição de mulheres, negro, indígenas e povos tradicionais).

    Esta negação direta à diversidade de valores, limita e viola as liberdades individuais e coletivas controlando os meios de produção provocando a dependência e a tutela do camponês submetendo à proletarização. Diante disso, a clandestinidade sempre atuou como luz para o projeto plurinacional, trazendo outros valores e princípios, inclusive reinterpretando novos conceitos de direitos humanos, ambientais e territoriais diante da geopolítica internacional, da captura do Estado pelo capital internacional e da atuação das empresas transnacionais que colocam seus interesses acima dos interesses das sociedades (dos direitos humanos e das soberanias nacionais) e transformam tudo em mercadoria. 

         A captura das estruturas públicas pelo rentismo no campo e pelo interesse transnacional, intensificou a severidade do Estado, em relação a questão agrária, limitando o direito de propriedade, em privado ou público e potencializando a apropriação indevida dos territórios, além de ignorar o direito tradicional e/ou originário em grande parte das terras devolutas no país. Esta disputa intensifica o racismo ambiental, o histórico de submissão e desterritorialização e apropriação/expropriação dos territórios camponeses, indígenas e quilombolas pelo capital nacional e internacional no seu processo de acumulação ampliado. Segundo os dados da Comissão Pastoral de Terra esta é a causa principal dos conflitos no campo  nos últimos anos (caderno de conflitos da CPT).

        Sem a proteção da lei e do Estado estes povos concebidos como ilegais e a margem da história, insurge como portador de direitos que, de forma autônoma, criam suas estruturas organizativas e resistem na defesa dos seus direitos, criando estratégias muito mais eficientes, a que chamamos de plurinacionalidade.

 

As Identidades/Territorialidades como princípio da plurinacionalidade

     Para compreender a proposta de plurinacionalidade que defendo, vamos partir do conceito de identidade defendido por Patrício Guerrero (2002):

Identidade são percepções que o indivíduo e/ou o grupo tem de si e dos outros, […] representações e subjetividades de um complexo sistema de percepções imaginárias, noções, ações, significações e sentidos que movem a prática humana e que determina o sistema de preferências, classificações, pertencimento e diferenças de fronteiras, inclusões e exclusões. […] Todo processo de construção de identidade é um processo relacional que vai além da simples rotina e que requer a construção d@ outr@ (Tradução própria).

      Retomando este conceito, podemos destacar três pontos fundamentais da convenção 169, Organização internacional do Trabalho – OIT:

PLURALISMO JURÍDICO: Percepções que o indivíduo e/ou o grupo tem de si e dos outros (procedimentos de auto-afirmação);
COSMOVISÕES: Representações e subjetividades de um complexo sistema de percepções imaginárias, noções, ações, significações e sentidos que movem a prática humana e que determina o sistema de preferências, classificações, pertencimento e diferenças de fronteiras, inclusões e exclusões (Art. 215 e 216 – CF 1988).
INTERCULTURALIDADE: Todo processo de construção de identidade é um processo relacional que vai além da simples rotina e que requer a construção d@ outr@ (GUERRERO, 2002) (encontro dialógico – negações e interações).

        O pluralismo jurídico está legitimado na Carta Magna do nosso país (Art. 216, CF 88). Assim. os novos sujeitos coletivos, em função de suas especificidades, estão reconhecidos como patrimônio cultural a partir dos bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, tendo como referência a identidade, a ação e a memória dos diferentes grupos que compõe a sociedade brasileira, nas suas formas de expressão, nos modos de criar, fazer e viver.
       Estes novos sujeitos coletivos ressignifica o conceito de território já que vivem na e da terra, articulam coletivamente, tem relação com seu modo de viver, seu sustento, sua tradição, sua cultura e desenvolvem suas atividades econômicas a partir dos seus conhecimentos tradicionais, uma discussão essencial para o projeto de uma justiça democrática pluralista e participativa adequada a contingências históricas sociais da sociedade contemporânea e uma nova perspectiva no conhecimento científico como sujeitos de uma realidade concreta frente a objetivação do mundo.
    Vale ressaltar que estes grupos, em sua maioria, se organizam como resposta às crises financeiras/alimentares/energéticas a partir do paradigma da questão agrária com destaque para os impactos da expansão do Capital no campo e da estruturação produtiva do modo de vida das populações que vivem e resistem no campo. Seus direitos extrapolam o discurso liberal da modernidade no seu sentido antropológico e filosófico cujas bases são o utilitarismo e o individualismo, principalmente diante de um estado inoperante presa ao Paradigma legalista e privatista que desconsidera a história e o processo mais efetivo de participação dos sujeitos coletivos.

O território como trincheiras contra o capital:

       A correlação entre pluralismo jurídico, decolonialidade e abordagem intercultural tem construído um paradigma político e intelectual que vem elaborando caminhos, possibilidades e imaginários políticos passíveis de viabilizar a ultrapassagem das correlações entre a economia política do capital e a determinação da forma-Estado, permitindo a reinvenção crítica da Política.

O diálogo intercultural apresenta-se como uma plataforma plural de filosofias, contextos, formas de expressão e de relação com o outro de maneira envolvente, bem como espaço social da dimensão política na defesa dos múltiplos grupos sociais étnicos e populares. Estes devem ocupar o cenário político com suas demandas, seus interesses, suas expectativas e necessidades, e ter o direito inalienável de reparação, contrapondo-se à íntima relação entre capital e Estado.

Os novos sujeitos coletivos nos apresenta um conjunto de entendimentos e práticas que, somado ao pluralismo jurídico democrático e participativo, é instrumento político dessa pluriculturalidade portadora de uma nova episteme. Ao enfrentar a colonialidade, o sequestro da vontade popular pelo Estado legislativo, a dogmática do discurso e da interpretação constitucional e a superexploração do trabalho podem efetivar um espaço público ético caracterizado por horizontalidades, participação e solidariedade (WOLKMER, 2002; 2004; WOLKMER e ALMEIDA, 2013).

Diante disso, o território recoloca  a questão das classes sociais, formadas por pessoas que ocupam a mesma posição nas relações sociais de produção em função das propriedades dos meios de produção, de seus territórios e dos poderes de decisão.  Primeiro por suas razões históricas, culturais e ambientais, mas também pela ancestralidade e coexistência com outras lógicas como a solidariedade, a autocriação e autonomia comunitária e os modos de existência como a plenitude humana do cerne da liberdade, além das contribuições nos modos de criar, fazer e viver na mudança da cultura política do Brasil.

Esta reivindicação do direito ilustra que a plenitude da existência humana só pode ser alcançada com a liberdade de todos. Todas as pessoas têm sua face individual e coletiva, mas no contexto atual do Brasil há uma dificuldade na defesa de pautas coletivas. Neste vaso, trata-se de uma oportunidade de aprender com estes grupos o modo horizontalizado e moralmente avançado de estabelecer as relações da política como autonomia, participação ativa, autocriação e de conhecer suas formas produtivas com manejo adequado dos recursos naturais.

A refundação da política no Brasil não se dará só pelo estudo dos clássicos da política do Norte Global, mas nos territórios tradicionais e na recriação de outras formas de conceber a política e as relações econômicas. Um dos meios de se fazer essa refundação da política está em olhar para dentro de nosso próprio país, como disse antes, por meio da valorização das formas de criar, fazer e viver dos povos e comunidades tradicionais, que sintetizam em três princípios básicos como:

a) Outras formas de relações políticas, que imbricam o público e o privado, a liberdade individual e a coletiva;

b) Relações horizontalizadas para resolver conflitos e formas autônomas, autocriativos e que inspiram outros modelos que sustentem a capacidade de associar a ação ao discurso;

c) Por fim, a vertente teórica e prática, como elemento fundamental para alcançar a associação entre as formas institucionalizadas de participação e a representação eleitoral, complementando com as formas de organização formal e informal dos povos e comunidades tradicionais.

 

“Ou todos seremos livres, ou ninguém será livre”.

A interpretação constitucional e o pluralismo jurídico a partir da Convenção 169 da OIT

         O Brasil, como signatário da Convenção 169, assume a responsabilidade com a pluriversidade do país, reconhece sua incompreensão e permite a legitimação dos territórios autônomos regulados pela organização comunitária, já que, cada povo tem sua dinâmica interna de relações de poderes e hierarquias para tomadas de decisões. Nas hierarquias, cada povo constrói a sua legitimidade. Diante disso, o Estado reconhece a juridicidade da organização social de cada povo -sabe que existe, mas sequer imagina como ela é realmente- por isso, estabelece a proteção dos conhecimentos tradicionais e do patrimônio genético brasileiro associados à biodiversidade como “protocolo comunitário” nos seguintes termos:

Normas procedimentais das populações indígenas, comunidades tradicionais ou agricultores tradicionais que estabelecem, segundo seus usos, costumes e tradições, os mecanismos para o acesso ao conhecimento tradicional associado e a repartição de benefícios […].

       Os protocolos autônomos são a tradução escrita dos consensos internos de cada povo para se relacionar com o Estados Nacional, com regras básicas e fundamentais que os povos e comunidades estabelecem e exteriorizam para o Estado, apontando como se deve respeitar o direito próprio, suas jurisdições próprias e formas de organização social em um processo de consulta prévia. Apontando como deve ser conduzido um processo de consulta prévia, respeitando o direito próprio, as jurisdições locais (originária ou tradicional), as formas de organização social e de deliberação coletiva.
      Os povos originários e comunidades tradicionais têm direito a determinar seu desenvolvimento, suas prioridades e seu futuro, a que chamamos de ‘autodeterminação’. As regras internas valem para dizer como se estabelece essa relação entre Estado nacional e povo. Esta é a novidade, e isso está claro nos Tratados e nas Constituições nacionais -o que não significa que seja fácil aplicá-la e implementá-la. Pois, as dimensões dos povos originários e das comunidades tradicionais são o sagrado, a ancestralidade e a harmonia com a natureza (espiritualidade, fraternidade ou divindade), enquanto, para o Estado moderno liberal, as dimensões são recursos, vantagens materiais e procedimentos legais.
       Definitivamente o povo e Estado não estão tratando do mesmo tema, ou falando a mesma linguagem. Daí a importância das condições de liberdade e de informação. A pressa econômica do Estado não tem correlação lógica com a reflexão do povo. A consulta se dá exatamente porque há uma distância entre a organização social dos povos e a organização social hegemônica e é em razão desta distância e das contradições e antagonismos, que foi estabelecida a Convenção 169 da OIT.
        A Convenção n. 169 é auto-aplicável para os países que a ratificaram, como é o caso do Brasil, ou seja, não depende de lei, decreto ou regulamentação complementar para que seja observada e cumprida pelos Estados para:

  • Os povos tribais, cujas condições sociais, culturais e econômicas os distingam de outros setores da coletividade nacional, e que estejam regidos, total ou parcialmente, por seus próprios costumes ou tradições ou por legislação especial;

  • E povos indígenas, pelo fato de descenderem de populações que habitavam o país ou uma região geográfica pertencente ao país na época da conquista ou da colonização ou do estabelecimento das atuais fronteiras estatais e que, seja qual for sua situação jurídica, conservam todas as suas próprias instituições sociais, econômicas, culturais e políticas, ou parte delas.

         A consciência de sua identidade (indígena ou tribal) deverá ser considerada como critério fundamental para a autodeterminação. O direito ao consentimento integra o direito de consulta prévia. Não existe um sem o outro. Quem consulta é sempre o Estado e os povos deverão ser consultados, mediante procedimentos apropriados, por meio das instituições representativas dos próprios povos. Quem vai dizer quem tem legitimidade na representatividade coletiva são os próprios povos.
       Os povos e comunidades são os conhecedores do território e são eles que poderão apontar a importância de determinados locais, tanto ambiental propriamente dita (nascentes de rios) quanto cultural imaterial, a exemplo de lugares sagrados ou que representam a identidade e memória daquele povo, sua cosmologia e ancestralidade. A importância da conservação do ecossistema está intrinsecamente ligada à noção de territorialidade e manutenção dos recursos naturais necessários para a subsistência e o modo de vida do povo ou comunidade afetada.
        Sendo assim, os povos e comunidades, que viviam na clandestinidade da lei, passam a ter o direito de decidir suas próprias prioridades no processo de desenvolvimento, na medida em que ele afete as suas vidas, crenças, instituições e bem-estar espiritual, bem como as terras que ocupam ou utilizam de alguma forma, as retomadas dos seus territórios e a auto-demarcação; a fim de controlar, na medida do possível, o seu próprio desenvolvimento econômico, social e cultural. A liberdade de determinar-se enquanto povo e o futuro de sua existência, passa pela definição dos seus trajetórias políticas, por isso, deve ser reconhecida e respeitada externamente. A partir de um consentimento prévio, livre e informado -com direito de “veto” ou de “não consentir”.
         A livre determinação conduz à noção de jusdiversidade –princípios universais de reconhecimento integral dos valores de cada povo formulados com liberdade de agir segundo suas próprias leis, o que significa ter reconhecido o seu direito e sua jurisdição– a partir da noção de diversidade cultural, diversidade de sistemas jurídicos próprios, que, por sua vez, vincula-se a determinado território e territorialidade, conformando a jurisdição indígena ou tradicional como uma ‘nação própria’.
        Em presença a esta análise, a consulta prévia deve ser encarada como um direito fundamental que garante a vida e a integridade física e cultural dos povos, de modo a prevenir e superar conflitos socioambientais em territórios tradicionais.

Referências

SOLAZZI, José Luís.  WOLKMER, Antonio Carlos. INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL, PLURALISMO JURÍDICO E A QUESTÃO QUILOMBOLA: UMA ABORDAGEM DESCOLONIAL E INTERCULTURAL DO DECRETO Nº 4.887/2003 E DA ADI 3239

GOMES, Lilian C. B. O OUTRO LADO DA HISTÓRIA QUE NÃO FOI CONTADO: A CAPACIDADE DE REFUNDAÇÃO DO SENTIDO DA POLÍTICA NO BRASIL A PARTIR DA EXPERIÊNCIA DAS COMUNIDADES DE QUILOMBOS. 

Disponíveis em: https://racismoambiental.net.br/wp-content/uploads/2017/08/DireitosTerritoriaisQuilombolas3.pdf

Fundação Rosa Luxemburgo. PROTOCOLOS DE CONSULTA PRÉVIA E O DIREITO À LIVRE DETERMINAÇÃO – 2019.CEPEDIS. Disponível em: https://rosalux.org.br/wp-content/uploads/2019/08/protocolos-de-consulta-web-1.pdf

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