Arte: Rose Caroline
Pesquisa e reportagem Por Èrica Araújo
Edição e Revisão textual: Joana Crivelente Horta
No País do “Agro é pop, agro é tech, agro é tudo”, slogan transmitido pela rede Globo nos lares de todo o Brasil, a marca de 33,1 milhões de brasileiros convivendo com a insegurança alimentar em algum grau – leve, moderado ou grave (fome), foi atingida. O número representa 58,7% da população brasileira. O país regrediu para um patamar equivalente ao da década de 1990. No nordeste, a fome fez parte do dia a dia de 21% das famílias. Os dados são do 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, elaborado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN), em 2022.
Ainda de acordo com a pesquisa, a fome tem cor, gênero e endereço. A pesquisa aponta que nas áreas rurais a insegurança alimentar esteve presente em mais de 60% dos domicílios. Em 65% dos lares comandados por pessoas pretas ou pardas, as famílias convivem com restrição de alimentos. Em lares chefiados por mulheres a fome chega a 19,3%.
Os dados da pesquisa da PENSSAN deixam claro que o modelo de produção atual do agronegócio pode ser tudo, menos humano, uma vez que permite à fome invadir os lares das famílias brasileiras. Os números também revelam o que Josué de Castro identificou ainda na década de 1950: a fome é epidêmica, resultado de políticas incapazes de retornar à população do campo seus direitos básicos.
Sandreia Santana, 29 anos, é a caçula de uma família de oito irmãos. Mulher, negra, sertaneja e filha de pais camponeses, nascida na comunidade de Deserto, zona rural de Ibitiara, por muito tempo carregou o estigma de ter sua origem camponesa. “Quando a gente cresce dentro da comunidade, tem aquele olhar de que somos atrasados, pelas poucas oportunidades de acesso à educação de qualidade”, coloca Sandreia. Ela saiu de Deserto ainda criança e retornou durante a Pandemia da Covid-19, para cuidar do irmão. Em contato com agricultores e produtores, passou a trabalhar com entrega de alimentos a domicílio. Dessa forma foi se reconectando com a realidade das roças na Chapada Diamantina.
Sandreia foi a única da família que conseguiu ingressar em uma universidade. Cursou pedagogia e hoje é pós-graduanda do Mestrado Profissional em Rede Nacional para Ensino das Ciências Ambientais (PROFICIAMB), ofertado pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), no campus avançado Chapada Diamantina. Sua pesquisa está relacionada à Feira Agroecológica da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) Campus XXIII, Seabra.
Em busca de conhecimento, Déia, como é carinhosamente chamada, encontrou nas ações de extensão da universidade pública a Agroecologia, que vem apontando caminhos para a reversão deste cenário calamitoso. Com firmeza nas palavras, ela conta como seu olhar para a produção de alimentos, sem utilização de veneno e levando em conta os saberes tradicionais, atividade praticada por sua família há gerações, se transformou a partir de experiências agroecológicas.
Ela reforça que a mudança em seu modo de ver a produção camponesa ocorreu depois que passou a integrar a organização da Feira Agroecológica da Uneb. “Depois de sair para estudar e me envolver com as feiras, voltei para minha comunidade com esse olhar de turista e pude entender melhor o que é ser rural. Antes eu vendia os produtos sem ter a dimensão da diferença entre um alimento com ou sem veneno”.
A autonomia na produção de alimentos e a consciência sobre o campo têm apontado um caminho de esperança para ela e para muitas outras famílias do meio rural. A história de Sandreia é uma de muitas histórias que engendram o movimento da agroecologia e a produção de alimentos nas comunidades rurais da região. Os alimentos cultivados nos quintais, em quase todas comunidades rurais são, em sua grande maioria, livres de veneno e sua produção utiliza conhecimentos ancestrais. No entanto, o discurso largamente implantado por grandes meios de comunicação desvalorizam o alimento natural para agregar valor aos produtos ultraprocessados.
Os movimentos agroecológicos buscam trabalhar com as comunidades a consciência sobre a inversão de valores causada por uma propaganda massiva financiada pelo agronegócio. Não se trata de permanecer no passado, mas de levar em conta os saberes locais, as sementes não transgênicas selecionadas há milhares de anos, um patrimônio valioso que está nas mãos dos camponeses, um modo de produzir que não prejudica os recursos naturais nem a saúde de quem planta e de quem come.
Como defende Miguel Altieri, uma das grandes referências acadêmicas no campo da agroecologia, as práticas agroecológicas fornecem os princípios ecológicos básicos para o estudo e tratamento de ecossistemas, de forma socialmente justa, economicamente viável e ambientalmente responsável .
A potência da agroecologia
Há quem conteste a capacidade produtiva da agroecologia e que sem o modelo de produção praticado pelo agronegócio seria impossível alimentar o povo brasileiro. Mas, no auge da pandemia, enquanto a fome se alastrava, mais de 8 toneladas de alimentos agroecológicos foram doados a 410 famílias das zonas rural e urbana de municípios da Chapada Diamantina.
As doações foram organizadas através dos Mutirões contra a Fome, do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), em uma parceria com a Associação de Produtores Rurais da Volta do Américo (Apruva), o Fundo Nacional de Solidariedade (FNS), e Paróquia Nossa Senhora da Conceição e agricultores familiares de comunidades de Lençóis e Morro do Chapéu. Nas primeiras doações as comunidades de Água Boa e Cantinho receberam cestas para algumas de suas famílias. Nas ações seguintes essas comunidades passaram a fornecer alimentos plantados em seus quintais a outras comunidades.
As ações estimularam a produção agroecológica local a partir da aquisição dos alimentos saudáveis, ao mesmo tempo em que buscaram reduzir a insegurança alimentar.
A potência da agroecologia mora na construção de uma rede de solidariedade que vem sendo gestada na Chapada Diamantina por diversos movimentos sociais.
Em 2019, a realização da VI Jornada de Agroecologia, organizada pela Teia dos Povos e pelo Povo Payayá, de Cabeceira do Rio, em Utinga, foi um marco para o fortalecimento do movimento agroecológico no território. O evento reuniu cerca de 4 mil pessoas, em quatro dias de debates, mutirões e celebração da cultura tradicional local, onde está enraizada a base desse movimento que se coloca como alternativa para um futuro com saúde para o planeta e os seres que o habitam.
Para o Cacique Juvenal Payayá, o movimento reavivou a potência de um povo unido. Para além do debate sobre a questão alimentar, a agroecologia trabalha na valorização das culturas tradicionais. “Agroecologia é a alternativa para quem deseja aprender a viver a vida sem agredir o próximo ou a natureza. A VI Jornada de Agroecologia veio para nos ensinar lições com sua pedagogia nativa em busca da paz, do bem viver”, relatou a liderança indígena ao refletir sobre o legado do evento no território Payayá.
O povo Payayá de Cabeceira do Rio resguarda mais do que a história contada. Otto Payayá e sua mulher, Val Payayá, são responsáveis pela manutenção de um viveiro de mudas diverso e valioso. Otto é conhecedor de ervas medicinais e trabalha com o cultivo e a coleta de mais de 70 espécies de plantas com propriedades medicinais. Dessa forma, a pequena comunidade Payayá resiste às gigantescas pressões que enfrentam ao longo dos séculos. É necessário muita ciência para realizar tal feito. Mas não uma ciência teórica, acadêmica, e sim uma ciência da prática do convívio harmônico com a naturez
Educar pela agroecologia
Apesar da agroecologia ser colocada como uma ciência de conceitos que integram o saber dos povos tradicionais e incorporar metodologias científicas, pode também ser considerada uma forma de produção na qual perpassam algumas dimensões, à exemplo da política, da biodiversidade, da sustentabilidade, da economia solidária e da educação. Essas são algumas das dimensões que a agroecologia busca abranger como forma de melhoria e busca por políticas públicas aos agricultores e agricultoras familiares.
O debate acerca das práticas de agroecologia vem sendo cada vez mais pautado dentro das redes de ensino, tanto no âmbito superior, como UNEB e UEFS e Instituto Federal Baiano (IFBA) como no ensino técnico, na Escola Família Agrícola e Centros Territoriais de Educação Profissional (CETEP), à exemplo das unidades de Wagner e Morro do Chapéu que oferecem o Ensino Médio Técnico em Agroecologia.
O CETEP de Wagner começou a ofertar a modalidade em 2017, sendo o primeiro da unidade em regime de alternância, no qual os estudantes permanecem em convivência na escola durante 15 dias e, nos outros 15, eles aplicam em suas áreas de produção familiares o que aprendem nas aulas, o que resulta na eliminação da evasão escolar nas áreas rurais. Por meio do curso técnico os estudantes recebem formação qualificada para responder às demandas do desenvolvimento ambiental e socioeconômico da região, permanecendo em seus locais de origem. Além de atender o município de Wagner, a unidade também recebe estudantes dos municípios de Andaraí, Lençóis, Bonito, Utinga, Itaetê, Nova Redenção e Mulungu do Morro.
Adailza Rainha de Souza, 31 anos, moradora de Várzea do Cerco, distrito de Mulungu do Morro, formou-se técnica em agroecologia pelo CETEP de Wagner. É com cuidado e respeito com a natureza que a jovem agricultora busca colocar em prática os princípios básicos da agroecologia em seu dia a dia. Ela ressalta que agroecologia é uma ciência que possui práticas sustentáveis que respeitam os seus conhecimentos tradicionais “Eu aprendi a cultivar os alimentos com meus pais e os meus pais com os meus avós, então vem passando de geração a geração, venho de uma família simples e lá nunca precisamos de grandes arcabouços tecnológicos para poder cultivar. A gente produz diversos alimentos, a exemplo do café, aipim, mamona, abóbora. Nossa produção além de ser para o consumo parte dela vai para a venda”.
Além dos espaços formais, a educação pela agroecologia também se dá em ações como as da Escola das Águas Nascentes Chapada Diamantina – BA, resultado das ações de articulação da Teia dos Povos. A primeira Vivência Agroecológica da escola aconteceu em março de 2023, com o objetivo de fortalecer a Universidade dos Povos. A proposta pedagógica é a partilha de conhecimentos sobre práticas agroecológicas, assim como de demais saberes e fazeres dos povos e das comunidades tradicionais. A formação aconteceu em Malhada de Areia de Cima, no município de Piatã, na Fazenda Flor de Café e no Território Indígena das Tapuyas, no Riacho das Palmeiras, em Seabra.
Feiras Agroecológicas: para além da compra e venda
Outra ação que tem crescido no território é a realização das Feiras Agroecológicas. Além de promoverem o fortalecimento do trabalho no campo, também fomentam reflexões sobre autonomia e a organização de diversos agricultores e agricultoras familiares do território da Chapada Diamantina.
As feiras vem ganhando espaços importantes para a promoção da transição agroecológica e aquisição de alimentos mais saudáveis livres de agrotóxicos e químicos prejudiciais à saúde. A feira agroecológica é também um lugar que busca promover o consumo responsável e o fortalecimento da organização comunitária, pois são realizadas de forma participativa, organizadas pelos próprios agricultores e agricultoras. Além de serem um espaço para comercialização de diversos produtos que vão desde o artesanato até hortaliças e frutas, também são palco para a troca de sementes crioulas, saberes populares e manifestações culturais.
Espaços estratégicos de comercialização, as feiras funcionam como pontes entre agricultores e consumidores, eliminando intermediários. Garantindo o aumento da renda familiar camponesa e reunindo agricultores e agricultoras familiares de todo território da Chapada Diamantina. Embora as feiras venham ganhando notoriedade em diversos lugares da Chapada, muitos são os desafios enfrentados pelos agricultores e agricultoras. Ainda são muito raras e pontuais os projetos e políticas públicas que visam fortalecer essa alternativa.
Outro desafio é a localização de produtores agroecológicos. Ainda não há nenhum banco de informações que reúna os dados do território. As secretarias municipais de agricultura não possuem registros, nem os sindicatos rurais. O mapeamento dessas comunidades é um desafio que tem sido apontado aos gestores públicos que se aproximam das iniciativas agroecológicas. “A gente sabe que tem muita gente, dentro das comunidades tradicionais, mas a gente não conseguiu ainda mapear. É um desafio promover a transição de cultivar sem veneno, além da falta de uma assistência técnica especializada”, alerta Ana Carolina Delfino, bióloga, com especialização em segurança alimentar e agroecologia.
Ana Carolina iniciou a sua jornada na agroecologia após a construção do Cati, uma iniciativa realizada pelo Banco do Nordeste, em 2019. Ana é uma referência na organização da Feira Agroecológica da Chapada Diamantina, na cidade de Seabra, cidade considerada pólo comercial do território. A primeira Feira de Agroecologia da Chapada Diamantina ocorreu em março de 2020, na cidade de Seabra, no pátio do Campus XXIII da UNEB em Seabra, mas com o surgimento do Novo Coronavírus, suas atividades foram interrompidas, tendo a sua primeira edição lançada em junho de 2022. De lá para cá já foram realizadas cerca de 13 feiras no período de um ano e dois meses.
Baseada na relação de confiança entre consumidor e agricultor, a feira agroecológica tem sido realizada no campus XXIII, UNEB – Seabra, com a iniciativa de vários agricultores e artesãos de diversos municípios. Segundo dados da pesquisa “Feira Agroecológica da Chapada Diamantina: Desafios e Perspectivas de uma Construção Coletiva”, organizada por Ana Carolina, desde da criação da Feira, cerca de 42 feirantes, entre pequenos agricultores e artesãos, integraram a Feira. Entre os municípios de origem estão: Seabra, Palmeiras, Piatã, Abaíra, Lençóis, Wagner, Utinga, São Gabriel, Ibicoara e Andaraí, organizados em torno da Rede Chapada Agroecológica.
Na comunidade rural de Volta do Américo, em Lençóis, a feira agroecológica busca trazer as pessoas das zonas urbanas para a zona rural, em um intercâmbio rico e transformador. A iniciativa é resultado de um trabalho junto aos estudantes de Educação de Jovens e Adultos (EJA) e da organização das mulheres da comunidade em torno de seus quintais produtivos, com apoio da APRUVA, MPA, Prefeitura de Lençóis e entidades parceiras.
Interrompida pela pandemia, a Feira celebrou sua retomada em agosto de 2023. Educadora e “agricultora aprendiz”, Kriscia Santos reforça que apesar da palavra Agroecologia ser um conceito novo e aparecer em diversos debates, as práticas em boa parte procedem da ancestralidade feminina. “O povo faz agroecologia mas não a partir do conceito e sim a partir da vivência. O conceito vai trazer elementos para gente poder lutar pela causa, por exemplo acessar políticas públicas”.
Kriscia coloca que as feiras têm incentivado o processo de transição agroecológica e o aumento da produção. É preciso que as comunidades alcancem um entendimento coletivo de que para se fazer agroecologia o meio deve estar saudável. Se um vizinho usa veneno, a produção de todos é contaminada. Técnicas de manejo têm sido implementadas para o fortalecimento da produção orgânica, como os Sistemas Agroflorestais (SAFs), que buscam a diversidade da produção e a alimentação do solo com os rejeitos das produções, numa lógica de retroalimentação.
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Sem feminismo não há agroecologia
Fonte: Cartilha Pensando a alimentação, a fome e a agroecologia desde o feminismo, produzida pelo Coletivo Nacional de Gênero do Movimento dos Pequenos Agricultores
O protagonismo das mulheres nas experiências agroecológicas da Chapada Diamantina são um exemplo de como as mulheres são primordiais para a realização do processo de transição.
Kriscia, que integra o Coletivo de Gênero do MPA, coloca que todo o processo de mobilização em Volta do Américo se inicia com a realização de rodas de conversas sobre os saberes das mulheres da comunidade acerca do manejo de víveres em seus quintais. “Nesse processo vamos vendo que mais do que saberes, elas têm a prática agroecológica, mais do que isso elas trazem essas memórias, que é algo muito forte”, completa.
Para o MPA, “se os movimentos camponeses lutam pela soberania alimentar através da agroecologia como ferramenta de mudança no produtivo, no cultural e no socioeconômico, então precisam do olhar feminista para analisar, planificar e definir as estratégias, em ordem de construir modelos de transformação socialmente justos.”
Com base no cultivo de relações saudáveis, com a terra, com a água, com todos os seres vivos, a agroecologia se coloca como caminho para a emancipação dos povos historicamente oprimidos e que tem a fome como instrumento de opressão. As experiências da Chapada Diamantina nos apresentam provas mais do que contundentes dessa alternativa para o bem-viver.