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Vale do Pati, A comunidade invisível que todo mundo vem ver

Crédito: Cláudio Dourado 

Por Cláudio Dourado 

       Sempre sonhei em visitar o Vale do Pati, na Chapada Diamantina, como turista. Foram muitos planos nos últimos 15 anos que nunca deram certo, mas quis o destino que a primeira visita fosse a trabalho.
     Cheguei em Andaraí no início da tarde, duas jovens me aguardavam de frente ao posto de gasolina. O primeiro contato foi surpreendente, elas estavam sentadas meio retraídas, com os cabelos de cachos volumosos e olhos de castanhos claros ao esverdeado. Mania de antropólogo querer interpretar a origem desde o primeiro contato, me conduziu a imagem de quilombolas. Uma delas, a Graci, me conduziu até o Guiné, povoado de Mucugê, na casa onde mora sua mãe, irmãs e sobrinhos. Logo na chegada a matriarca me recebe se apresentando como Dona Raquel, num gesto de satisfação e decepção por eu nunca ter ouvido falar de suas histórias, sua vivência e seu poder dentro do Pati. Exclamou: “o mundo todo me conhece e você não!”.

Crédito: Cláudio Dourado 

      Eu de frente para ela ouvia cada detalhe de sua fala com atenção enquanto reparava minuciosamente a casa. A janela com seis livros, com ideias de auto ajuda, comunidades tradicionais e romance. Esperei concluir sua fala e fiz um comentário de um dos livros intitulado ‘minha vida dá um Romance’ de Gésia Cássia Lima: “vi este livro num grupo de whatsapp esta semana quero muito adquiri-lo”. Ela virou pra mim e disse: “Tá vendo, eu sabia que você já tinha ouvido falar de mim, todo mundo vem aqui pra me ver e ouvir”.

      Fiquei mais atento, querendo entender cada riqueza de sua fala, de suas memórias com destaque à sua infância sofrida e o papel de mãe na educação dos filhos. Mal eu sabia que o Pati era um lugar além de meu imaginário, com desafios extremos para minha capacidade física e de belezas inimagináveis. Nesse momento eu já enxergava gestos indígenas e afros na fala, nos cômodos da casa e no quintal.

      Já na casa do seu esposo, Seu Preu, fui recebido na mesa da cozinha. Falamos sobre um Pati de outro tempo, um contexto de remorso e saudade, mas com muita leveza e risos. Naquele momento já não compreendia mais a origem do patizeiro, eram tantos detalhes culturais que formava um povo único, altamente intercultural. As suas filhas, entre o trabalho e a preparação para o culto, volta e meia parava na sala e complementava sua fala, que sempre remetia a seca, excesso de chuvas e comercialização da produção local.  

      No dia seguinte, já nas trilhas sou surpreendido com uma exuberância de gerais e muita água, o papo entre as duas jovens rolavam entre o medo nas trilhas, pelo fato de serem mulheres, as trilhas tropeiras e as áreas comuns onde as mulas pastam entre um viagem e outra.

      A primeira casa que pisei no Pati é denominado de igrejinha, lá eu visitei a igrejinha de Senhor do Bonfim, comentamos sobre a ausência de padre e as relações de trabalho na comunidade, uma dinâmica quinzenal entre os afazeres para o turismo e os afazeres tradicionais como nativo -termo usado pelos turistas. Ainda tentando entender o funcionamento da rotina interna, fomos recebidos com café e bolo. Era apenas a primeira de 18 km entre subidas, descidas, travessias de rios e chuva. 

    Pouco mais de meio dia chegamos na casa da Família de Dona Raquel, lá almoçamos e seguimos viagem. Nesse momento, já parecia mais evidente o conflito em diversas épocas da comunidade e como cada geração passou a compreender a luta e criar suas próprias dinâmicas, nesta relação com o outro, seja Estado, turistas ou pesquisadores.

     Ao serem questionados sobre o que configura a essência do Pati, me elencaram as mulas, as trilhas, a água e os gerais. Nesta mesma ordem consigo compreender que há uma dinâmica específica patizeira, que convive entre a energia solar, o sistema de comunicação e cambiais das mais sofisticadas e a manutenção de práticas de solidariedade, produção, consumo, convivência interna, territorialidade muito eficientes e sofisticadíssimas.

Crédito: Cláudio Dourado 

      Entre um lado do Pati a outro são mais de 20 km, internamente as casas são localizadas em pontos estratégicos do território como repousos, apoio de refeições para tropeiros e pedestres na lida diária. “Onde chegamos, comemos e dormimos!” Afirma Graci, presidenta da Associação Comunitária. O que parece ser uma desordem aos olhos dos visitantes, são estratégias de sobrevivência que perduram desde os primeiros habitantes.

     O contexto, os obrigaram a mudar a rota da economia. Antes toda riqueza saia do Pati para as feiras livres, hoje com o Parque Nacional da Chapada Diamantina (Dec nº 91.655 de 17 de setembro de 1985) esta riqueza só se tornou possível com o turismo. Todas as casas recebem hóspedes e oferecem condições para refeições. Mesmo assim, em cada casa mantém o espaço do visitante e o espaço da família – o lar. 

     Eu como antropólogo pude compartilhar um pouco de cada espaço, entrar em cômodos exclusivos aos parentes e ter a visão também do externo, como turista, da forma que sonhava, mas com o privilégio de um morador nas suas labutas de dificuldades e prazer, que ordena suas identidades e territorialidades, como Patizeiro. Comunidade tradicional que aprendeu a dialogar-se, entre as gerações e os contextos externos de cada época, para construir uma vivacidade de fé, religiosidade, cura, trabalho, solidariedade, relação com a natureza, alegria, cuidado, cosmovisões e defesa do território, graças às práticas ancestrais e interculturais exclusivos da Chapada Diamantina e com a malícia da mulher, detentora da oralidade e capaz de guardar suas particularidades.

     A identidade, como povo tradicional, é a garantia da comunidade, frente a convenção 169 da OIT, para construir seus próprios protocolos de consulta prévia e capacidade de diálogo, de forma horizontal, com os órgãos do Estado e criar resistência contra a especulação provocada pelo neoliberalismo da natureza.