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A depredação da natureza nos gerais de Mucugê e Ibicoara​

    A grande extensão de terra, onde se instala os gerais da Chapada Diamantina, há muito tempo é utilizada pelos moradores da região como área de uso comum. Esta área, coberta de vegetação característica do cerrado, tem sido muito importante para os pequenos agricultores e para os povos e comunidades tradicionais região. Os gerais serviam para deixar o gado solto nas épocas da seca, bem como terras de cultivo nas áreas mais próximas aos corpos d’água. No entanto, estes espaços tem sido também uma das principais áreas de cercamento da Chapada durante os últimos 50 anos. Neste sentido, queremos abordar ao decorrer do dossiê, o processo de expansão do agronegócio nos gerais de Mucugê e Ibicoara, onde se concentra o principal polo de produção do setor na região. Esta expansão tem provocado numerosos problemas ambientais, como a contaminação e depredação da natureza, ameaçando a segurança hídrica das populações próximas. Além destes impactos, ao longo das discussões, evidenciaremos também como esta expansão não teria sido possível sem o apoio decisivo por parte do Estado que vem facilitando a infraestrutura necessária para ancorar o crescimento do setor, construindo entornos normativos e arranjos institucionais favoráveis à sua implantação. 

A chegada dos grandes produtores na Chapada Diamantina 

O geógrafo e professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), Rogério Haesbaert, relata em seu livro “Desterritorialização e identidade: a rede gaúcha no Nordeste”, publicado em 1997, a chegada dos agricultores sulistas ao Oeste da Bahia e à Chapada Diamantina. Estes agricultores chegaram no cerrado impulsados pelas políticas de modernização da agricultura promovidas durante o regime militar (DELGADO, 2012). Haesbaert narra o encontro destes produtores com a população local a partir das dinâmicas de (des)territorialização. Em jogo estavam os recursos naturais (as terras), os políticos (prefeituras e outros cargos de representação) e as relações de trabalho. Nestas disputas, a questão identitária – os sulistas confrontados muitas vezes com os baianos – jogava um papel aglutinador e de representação muito forte. O trabalho de Haesbaert nos permite situar a chegada dos produtores de estados como Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina aos gerais da Chapada Diamantina, dentro da mesma corrente que levou à ocupação das áreas do cerrado Baiano, na década de 80. 

De fato, as intenções iniciais de muitos destes agricultores que se instalaram nos gerais de Mucugê e Ibicoara eram de cultivar a soja. Os desenvolvimentos realizados pela Embrapa e pelas parcerias brasileiro-japonesa, em matéria de tecnologia e pesquisa agrícola, criaram as condições de adaptar os solos do cerrado, pouco propícios ao cultivo e ao plantio dos mais variados grãos. Na verdade, o processo de instalação e compra de terras dos produtores sulistas naquele momento, podia ser entendido como um apêndice do que acontecia no Oeste do estado – hoje uma das áreas de maior produção de soja do país. Contudo, os agricultores demoraram pouco a entender o potencial da região para o cultivo de culturas pouco frequentes no Nordeste, como é o caso da batata. Com o tempo, a monocultura deste tubérculo foi adaptada pela maioria dos produtores e hoje a Chapada é o principal polo produtor deste cultivo e o comercializa com os principais mercados de cidades nordestinas como Fortaleza, Maceió, Recife, Feira de Santana e Salvador.

A construção da barragem do Apertado como ponto de inflexão

Imagem: OCA 

 

 

Mesmo que a chegada dos grandes produtores tivesse começado há mais de uma década, não foi após a inauguração da barragem do Apertado, em 1998, que o agronegócio começou realmente a intensificar suas atividades. Situada no meio dos gerais de Mucugê-Ibicoara, esta obra, que represa o rio Paraguaçu em seu tramo inicial, permite acumular água para o uso das fazendas que rodeiam o reservatório. Para ilustrar o efeito desta barragem, no crescimento das áreas irrigadas, a Imagem 1 mostra a distribuição dos pivôs centrais antes e nos anos subsequentes a sua construção. A grande concentração atual de círculos irrigados chama imediatamente a nossa atenção. Um informe recente da Agência Nacional das Águas (ANA) destaca que esta parte dos gerais da Chapada Diamantina tem uma das maiores concentração de pivôs centrais do país (ANA, 2017). 

 

 

Imagem 1. Expansão dos pivôs de irrigação centrais entre 1997 e 2020. 
Fonte: Arrazola (2022, em elaboração)

O aumento das áreas irrigadas tem tido um forte impacto sobre a quantidade e qualidade das águas disponíveis na região. A lógica da produção em grandes monoculturas, na que as empresas do agronegócio estão inseridas, as leva a uma busca crescente de aumento da produtividade e em consequência, o aumento da sua produção por hectare. Isto implica o uso de técnicas de cultivo intensivas em capital e que depredam as águas e as terras para poder extrair mais valia absoluta e mais natureza (ARAGHI, 2003). Aliás, justamente por isto, os mesmos produtores costumam se apresentar, para diferenciar-se do latifúndio arcaico, como empresários detentores do conhecimento necessário que lhes tornam capazes de administrar de maneira competente suas propriedades – argumento pelo que acreditam fechar definitivamente a porta a qualquer reforma de distribuição da terra. No entanto, o que a expansão das monoculturas de batata nos gerais de Chapada nos mostra é, mais uma vez, que o crescimento deste setor só se torna viável através da exploração da renda da terra (MARTINS, 1979), hoje na sua versão neoliberalizada da renda da terra (MOREIRA, 1995). Isto significa que a expansão do agronegócio só é possível mediante a apropriação dos recursos naturais comuns – terra, mas especialmente nos dias atuais, a água – e dos processos metabólicos inerentes à natureza – como a fertilidade do solo e sua capacidade de regeneração. Estamos assim, face a um setor inerentemente rentista que no próprio processo de sua expansão, gera as condições que ameaçam sua reprodução. 

A depredação das águas

A gravidade do assunto evidencia que estas questões não ameaçam apenas à reprodução do agronegócio, o que seria um problema mais restrito ao setor em si próprio, mas interfere na reprodução da vida mesma. Assim, acontece com os impactos na qualidade e quantidade das águas mencionados anteriormente. O rio Paraguaçu, um dos mais importantes da Bahia, tem secado várias vezes nos últimos dez anos devido ao aumento da irrigação. Numa das crises mais impactantes, ocorrida em 2019, a própria cidade de Mucugê, que tem usado o rio para o consumo de água de seus moradores, teve que perfurar vários poços artesianos para garantir não ver interrompido o fornecimento de água. Os seguintes mapas ilustram a distribuição das outorgas de água concedidas pelo Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (INEMA) nos últimos oito anos. O Mapa 1, mostra a distribuição dos tipos de outorga. Podemos averiguar como a maioria dessas outorgas são para captações superficiais e que seguem o percurso dos rios. Percebemos também que os poços ficam em áreas mais distantes, geralmente no interior das propriedades. O Mapa 2, diferencia as outorgas em função do volume de água autorizado pelo INEMA e nele podemos observar como as vazões maiores se concentram na área do agronegócio. Nele, podese apreciar como as maiores quantidades de água concedidas pelo Estado estão concentradas nas áreas do agro polo. Esta distribuição, nos dá uma ideia de em que mãos está a maior concentração do uso deste recurso e para além, onde se deveria priorizar sua limitação ou distribuição. Atualmente, as disputas pela quantidade da água disponível são um problema na região. 

Mapa 1. Distribuição das outorgas nos gerais de Mucugê-Ibicoara segundo a vazão concedida.
Fonte: Arrazola (2022, em elaboração)

Mesmo que os mapas nos ajudem a compreender a problemática, os dados disponíveis não são capazes de nos fornecer uma imagem fidedigna do nível de depredação das águas que o agronegócio causou e causa na região. Isto acontece fundamentalmente pela falta de informação disponível. Em conversas com vários produtores e trabalhadores agrícolas da Chapada, podemos entender que é muito frequente a perfuração de poços clandestinos, sem registro oficial, sobre os quais não se tem controle nenhum. Nesta realidade, o INEMA não fiscaliza o volumem de água extraído dos poços, nem o modo pelo que foram perfurados. Muitos desses poços capturam as águas dos lençóis freáticos de baixa profundidade e não se sabe se atingem os aquíferos. Tudo isto co-ajuda no desaparecimento gradual das nascentes e das secas dos rios. Assim, quando os níveis de água destes rios estão baixos, as empresas extraem água de seus poços e continuam irrigando seus cultivos. O setor argumenta que os problemas da escassez de água têm a ver com a variabilidade do regime de chuvas do interior baiano, negando qualquer responsabilidade de sua parte. No entanto, e mesmo que de fato essa variabilidade exista, o agronegócio tem continuado a se expandir, inclusive nos períodos de seca, agravando o estado dos rios e a morte das nascentes da região.

Outro problema se refere à contaminação das águas. As monoculturas em que o agronegócio fundamenta seu modelo de produção, requerem um uso intensivo de insumos agrícolas e de agrotóxicos, tanto para a preparação do solo, quanto para o combate às pragas, cada vez mais agressivas neste tipo de sistema. Estes produtos escoam junto com o fluxo das águas para os rios e acabam por poluir os ecossistemas, colocando em risco a vida de todos os seres que dependem deles, incluídas as pessoas. Um informe de 2019, elaborado pela agência Repórter Brasil, nos mostra, após realizar um teste, a presença de agrotóxicos nas águas que abastecem as populações urbanas do Brasil em todos seus municípios (REPORTER BRASIL, 2019). No estudo, Mucugê ocupa um lugar de destaque no nível nacional pela detecção de todos os agrotóxicos que foram contemplados na pesquisa. No entanto, tanto a prefeitura quanto as empresas responsáveis pelo manejo dos contaminantes desconsideraram os resultados deste informe aludindo que eles realizam “suas próprias análises para comprovar a qualidade da água” e que não tem encontrado sinal de preocupação nenhuma por enquanto.

O papel do Estado na expansão do agronegócio e depredação da natureza

Já foi colocado como a construção da barragem do Apertado por parte do estado da Bahia foi crucial na hora de consolidar o crescimento do agronegócio na região. Ao longo deste processo, as suspensões que ocorreram diversas vezes se deram por falta de estudos de impactos de avaliação, segundo os órgãos ambientais. Até o momento esses estudos ainda não foram concluídos. Apesar dos avanços das legislações ambientais desde essa época, a construção de barragens que viabiliza a expansão das áreas irrigadas para o setor continua estando presente hoje. No Mapa 3, podemos ver a localização dos pivôs irrigados ao longo dos gerais. Pode se apreciar na parte superior direita uma pequena área onde ainda não se concentram pivôs de maneira tão forte. Esta área é ocupada principalmente pelos pequenos produtores do município que abastecem às feiras livres da região. No entanto, está planificada a construção de várias barragens ao longo dessa parte dos gerais para represar as águas do rio Capãozinho e permitir a expansão do agronegócio por lá. Uma destas barragens já está concluída e a segunda, a barragem Casa Branca, será construída em parceria público-privada entre o governo de estado e o agro polo da região. O governo arcando com o 50% do custo da obra. Dentro do próprio governo, inclusive, tem-se questionado a utilidade pública da barragem por parte do responsável da Secretaria do Meio Ambiente (SEMA) devido às dúvidas quanto benefício que esta trará aos agricultores familiares da região. De fato, o que já está acontecendo são profundas mudanças no mercado de terras: segundo os moradores, as empresas estão comprando as terras nas áreas que se tornarão irrigáveis e o preço das mesmas estão subindo rapidamente. Essa mesma realidade aconteceu nas outras partes dos gerais após a construção da barragem do Apertado: o preço da terra mais que duplicou ao longo dos últimos anos (FNP, 2014). 

Mapa 2. Distribuição dos pivôs gerais e das barragens nos gerais de Mucugê-Ibicoara.
Fonte: Arrazola (2022, em elaboração)

O apoio do setor público não opera somente no âmbito estadual, tem também um impulso forte desde os municípios. Isto pode ser observado ao longo do tempo, desde a chegada do agronegócio à região. Já nos 90 a prefeitura de Mucugê organizou uma manifestação contra o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) por causa da interdição da obra da barragem do Apertado devido à falta de estudos de impacto ambiental. Hoje, com os problemas de abastecimento de água na cidade, sendo um dos temas de maior preocupação, a prefeitura anunciou a construção de mais quatro poços artesianos e agradeceu publicamente à Associação dos Produtores de Alimentos da Chapada – comandada pelo advogado da empresa Igarashi, a maior da região – pela construção de mais um poço adicional a seu cargo. O agronegócio polui, depreda as águas e a prefeitura agradece pelo estabelecimento das parceiras público-privadas. Ainda mais, segundo os ativistas ambientais que atuam na área, os espaços de protesto e dissidência frente ao agronegócio nas cidades onde o setor tem maior presença são praticamente inexistentes devido às coações – quando não ameaças – que emanam frequentemente desde o âmbito municipal. 

 

É importante frisar que este apoio decisivo por parte do estado para a expansão do agronegócio na Chapada não se remete exclusivamente à construção de infraestruturas. Outro aspecto chave, embora talvez mais velado, neste sentido tem a ver as facilidades normativas e institucionais mediante as que o poder público regula a distribuição dos recursos naturais e que hoje permitem de maneira escancarada o uso depredatório dos mesmos por parte das grandes corporações do agro. Talvez o caso da governança das águas da bacia do Paraguaçu seja o mais paradigmático neste sentido. A problemática que envolve o funcionamento do comitê não pode ser resumida neste dossiê por motivos de extensão, mas vale a pena apontar para alguns elementos óbvios que nos deveriam fazer suspeitar do senso de justiça com o qual esta entidade foi desenhada formalmente para proceder. O atual presidente do comitê é um dos representantes do agro polo de Mucugê-Ibicoara e tem sido criticado por atacar e criminalizar aos pequenos produtores que usam uma fração mínima das águas da bacia. Por outra parte, e ligado com este fato, o comitê tem sido incapaz de aprovar, desde o tempo de sua criação em 2006, um manual de manejo da bacia, instrumento fundamental para a gestão das águas conforme os termos que marca a legislação. 

Conclusões

Enfim, os problemas socioambientais da Chapada são muitos e diversos como podem se imaginar. Neste dossiê tentamos nos aproximar a um deles, talvez um dos mais antigos, mas não o suficientemente discutido. No dossiê temos realizado um voo rasante sobre o processo de expansão do agronegócio nos gerais de Mucugê-Ibicoara. Esta área pode ser considerada como núcleo do setor da região, desde onde se irradia para outras áreas, como acontece hoje no caso dos gerais do município de Piatã. Vimos também como o apoio do Estado, especialmente no âmbito municipal e estadual, tem sido fundamental para seu crescimento através da construção da infraestrutura necessária. No entanto, o setor público também intervém decisivamente no âmbito institucional. Esta temática dá para ser aprofundada em outro texto, na qual nos debruçaremos sobre o funcionamento do Estado na Chapada Diamantina em face da percepção de aumento dos conflitos socioambiental na região. 

Referências

ANA. Atlas Irrigação: Uso da Água na Agricultura Irrigada, 2017. 

ARAGHI, F. Food regimes and the production of value: Some methodological issues. Journal of Peasant Studies, v. 30, n. 2, p. 41–70, jan. 2003. 

ARRAZOLA, Iñigo, 2022. Águas exploradas, águas que juntam: justificações, conflitos e produção do comum perante a expansão do agronegócio no Alto e Médio Paraguaçu, Bahia. Tese de doutorado em elaboração, UFBA. 

DELGADO, G. C. Do capital financeiro na agricultura à economia do agronegócio: mudanças cíclicas em meio século (1965-2012). 1st ed ed. Porto Alegre, RS: UFRGS Editora, 2012. 

FNP. Análise do Mercado de Terras, 2014. 

MARTINS, J. O cativeiro da terra. Editora Contexto, 2010. 

MOREIRA, R. Renda da natureza e territorialização do capital: reinterpretando a renda da terra na competição intercapitalista. Estudos Sociedade e Agricultura, 1995. REPORTER BRASIL. Agrotóxicos contaminam água das cidades, descubra o que sai da sua torneira. Disponível em: <https://reporterbrasil.org.br/2019/04/coquetel-com-27-agrotoxicos-foi-achado-na-agua-de-1-em-cada-4-municipios>. Acesso em: 13 maio. 2020. 

Uma resposta

  1. É fundamental cuidar agora, o preço a ser pago mais adiante será pesadíssimo.
    Importante que a população se mobilize, tenha consciência dos efeitos desse descaso.
    Triste realidade 😔

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