Se olhar no espelho e não se reconhecer. O estranhamento da identidade, do seu próprio eu, de suas raízes que desprenderam. As perguntas óbvias, feitas ao espelho quando não se conhece a sua identidade são dilacerantes, mas o retorno à escuta paciente, a ancestralidade, te convidam a adentrar no espelho. Lá, em outro plano de existência, é onde mora o Sr. João, entre os paredões das serras de Piatã, tendo como escudo a formação geológica de contemplação de muitos.
Ao entrar na casa do ancião, a frase “Oh Santa Virgem, oh estrelas do céu, oh Maria, valei-me” espelhada nos convida a olhar as coisas pela perspectiva menos óbvia. O Sr. João é um homem de olhar certeiro, que desvenda a alma. Quando chegamos, fomos recepcionados por todos os santos e encantados de uma altar minuciosamente desenhado, entre imagens sacras, raizadas e velas estavam as imagens dos devotos que alcançaram suas preces, convite de formatura de cursos… Para a nossa região só o sagrado para lhe conceder a possibilidade. Ele fez do seu lar o seu local de trabalho. A religiosidade, a identidade, a obrigação e o ofício se misturavam ao ponto de ser um só. O altar também era o Sr. João.
Sua imagem imposta à imensidão dos paredões de pedra que emolduram cada paisagem da região, mesmo que muitos não possam ver, depois que o conhece é difícil desassociar. Seus olhos não são só olhos, se tornam oráculos, sob suas mãos enrugadas e voz imposta, estão as bênçãos que cada fiel vai em busca. Sua enorme sabedoria se faz com o divino, com a memória e a história.
Há mais de 70 anos sendo o ponto de referência das histórias de todo um povo, o espelho portal que ajuda a lembrar a identidade daquela comunidade, adquiriu a habilidade de enxergar no outro além do que é visível.
Maria, sua esposa, era uma Maria como muitas de olhar forte e palavras meigas. Com todo seu carinho e afeto nos recepcionou e falava sobre o frio de quem mora nas serras. Minutos depois, o Sr. João nos chama. Fomos em sua direção em uma fila ordeira com a cabeça baixa, como a situação pedia, de um a um pedimos a benção. O Sr. João se sentava à beira do fogão ao lado de uma janela que emoldurava a paisagem, a aproximação divina se fazia pela cruz acima da sua cabeça, tal cenário não seria pensado nem por Glauber Rocha em seus filmes.
Em nossa conversa, prontamente o Sr. João começa a falar sobre o surgimento de todo aquele lugar: “Não existia o Curral de Vara, depois, esses quatro cidadãos chegados de fora… Vinheram só os homi. Os outros voltaram, só Tomé morreu aqui”. A primeira mulher daquela terra, ele não se recordava, ninguém falou, mas o nome de sua avó, quem comprou a terra do Tamboril, mulher a qual Sr. João igualava em importância os homens que ilustram a história conjunta, se fez presente desde o início. Coincidência ou não, ela foi a única que nomeou o local a partir do cuidado, da árvore do Tamboril que a semente é remédio. Diferente do Curral de Vara e do Barreiro que era a utilidade da natureza manipulada à vontade do homem, para se fazer um Curral ou o Barreiro para as paredes.
Os melhores e piores dias de sua vida foram ali. Ele nunca esqueceu dos dias em que não podia praticar sua devoção porque passava a noite apagando o fogo na serra sozinho, ou da alegria em receber e compartilhar os frutos plantados do lado da janela. Recordar essa lembrança deixou o Sr. João sorridente. Por vezes sua existência naquela terra esteve sob ameaça. Ora pelos órgãos de conservação que não entendiam sua ligação com a terra, ora pelos grileiros que queriam se apossar do terreno. O que ambos não entendiam, é que ele e aquele local já haviam se tornado em um só.
“Como eu agricultor da terra não vou trabalhar? (…) Eles (Ibama) me azuretando por eu ter ampliado a terra, e o Incra cobra nós, da terra, que plantamos algo. Eles cobraram os maquinário, o que a gente faz? faz como os antepassados faziam.”
O seu relato do encontro com o Ibama é repleto de simbolismo, sua simbiose com a terra se mostra na sua fala. A terra é trabalho, identidade, memória, é sinônimo de vida. Nas múltiplas camadas da individualidade de Sr. João vinham à tona em diversos momentos. Sua relação com os coronéis da região era instigante, nos levava a olhar além do binário, ele se dava muito bem com o um dito Coronel moderno que ocupou a cadeira do gabinete;
“Ele que me deu a placa de luz, nois foi abençoado com a luz. A luz é de Deus, antes era lampião, mas ele viu nossos problemas e nos ajudou.”
Ele levou a dádiva divina da luz ao Sr. João, no momento foi possível recordar da figura de Jesus em João 8:12: “Eu sou a luz do mundo. Quem me segue, nunca andará em trevas, mas terá a luz da vida”, não distante o próprio panfleto político, do Coronel estava ao lado do próprio Jesus no altar do Sr. João, assim como os demais “santos”.
Depois dos entrelaces das histórias, nos convidamos para conhecer o quintal que nos fascinava pela janela. O quintal era reflexo nítido das histórias contadas. Naquela mesma terra que pisamos, tinha acontecido todos os embates, algumas coisas ainda estavam iguais. Na hora melancólica da despedida, a sensação de habitar outra realidade nos impedia de querer partir, uma de nós pede ao Sr. João que reze por ela, ao anotar seu nome naquele papel uma parte dela ficou ali.
Conversando com ele foi perceptível quão pequeno é o nosso mundo, como por vezes não ultrapassamos a imagem embaçada do espelho. É pouco permeável ao nosso passado. O Sr. João vivia num universo restrito, em que os devotos iam ao seu encontro. Apesar de todo conhecimento detido, ainda apresentava um olhar curioso e muitas perguntas para o outro, muito pouco era convertido às letras formais, mas era certeiro na leitura. Tudo que aprendeu foi com o saber oral, reunia na memória a história de todo um povo.
Na volta, toda a resistência do Sr. João em ter sua imagem e a da sua casa capturada pelas máquinas fotográficas fez sentido. Em uma região que mostrar o seu melhor é ficar exposto às pessoas que vêm de fora viver no “paraíso” ou pegar o que tem no “paraíso” mudando as dinâmicas de existência, não ser visto é uma estratégia de sobrevivência.
Os quilombolas do passado também utilizavam do esconderijo para se proteger, mas diferente dos antepassados do Sr. João, que “toda alma boa era bem-vinda”, na Chapada Diamantina atual se fechar aos que vem de fora é uma consequência do medo de não poder mais existir, de não poder enraizar seus pés na história, de não se reconhecer no espelho.